segunda-feira, 21 de setembro de 2009

PORTO DO MANGUE, EU TE SAÚDO!


PORTO DO MANGUE, EU TE SAÚDO!


Gilberto Freire de Melo
Escritor pendenciense - Várzea do Açu-RN

Gostaria de que não passasse o tempo e não se distanciasse a convivência com as pessoas que nos ensinaram a amar a terra, o povo e suas origens, através das lições de solidariedade e dos exemplos de cidadania que nos ajudaram na formação, quando ainda patinávamos, amealhando conceitos e práticas de relacionamento social!

Gostaria de permanecer convivendo com ícones como Antônio Tomaz e seus numerosos familiares, Raimundo e Benedito Leandro, José Barbalho, Joaquim Maria e Valdemar Campielo, Alfredo Almeida, em cujas lições aprendemos a ver a vida por prismas em que o trabalho, a honradez, o caráter, os critérios de respeito aos direitos humanos, de solidariedade às pessoas de nosso relacionamento se manifestavam em todas as ações, quer nas asperezas dos ranchos das salinas, quer no convívio familiar e administrativo, onde se realçavam os direitos dos trabalhadores que produziam a renda, não apenas dos potentados, mas dos parentes, dos amigos, dos conhecidos, das comunidades, enfim.

Porto do Mangue está aí firme e forte debruçado sobre as janelas geográficas do Oceano Atlântico, e abrindo, para nós, outras janelas, estas eletrônicas e tecnológicas que o avanço das comunicações nos propõe explorar - a INTERNET - sem qualquer diferença de como é usada nas grandes metrópoles. E por menos interessantes que sejam os motivos, ousamos invadir territórios africanos, europeus, asiáticos, o espaço sideral, quando até bem pouco tempo, apenas olhávamos o Oceano Atlântico e sonhávamos com os outros mundos existentes além-mar. E os nossos horizontes comunicativos se resumiam ao bote de João Régis, às lanchas e barcaças de Matarzzo - Maria Pia, Aurélia, Aurora - e outras, que a consciência especial de seus comandantes, nos transportava em inesquecíveis caronas até Macau, onde começava um mundo novo, um trampolim para outras paragens.

E eu me lembro - como poderia esquecer? - de Geraldo Gervásio, Buluta, Chico de Alfredo, Parrudo, Manoel Freire, ainda em campo, e dos substituídos, Nezinho Leandro, Zé Nicolau, Siduia e Sidóia, Cícero Tomaz, Zezinho Leandro quando freqüentávamos o bar de Romana, onde a maré cheia nos lavava os pés sem termos que ir à praia, roubando-nos os chinelos quando os deixávamos, displicentemente, em baixo da mesa.

Não perdi a esperança de ainda encontrar Dalva Almeida, esposa, hoje viúva do empresário José Ribeiro, de quem mantenho a terna lembrança dos serviços nos Correios e Telégrafos, em Macau; Auxiliadora Leandro que não foi muito feliz num casamento; Laís, a esposa e viúva de Nezinho Leandro, com quem me encontrei em Areia Branca - onde andarão?

Por tudo isso e por muito mais que guardo exclusivamente para mim, Porto do Mangue, eu te saúdo e te devoto sinceramente o amor que a grandeza de teu povo me impôs e que me faz, de vez em quando, pisar e beijar o chão de tuas lindas praias, como Rosado, Guaxinim, Ilha do Peixe Boi, - não é, Geraldão Gervásio?
CULTURA REGIONAL
EPOPÉIAS DA VÁRZEA DO AÇU

PRETO RUÍVO e a pega do Barbatão de Camilo Bezerra


Gilberto Freire de Melo
Escritor e Professor da Várzea do Açu - RN


(Descrição de Manoel Rodrigues de Melo - Várzea do Açu - 3ª Edição - 1979 - Com prévia autorização)


Atendendo ao que lhes encomendavam os filhos de Camilo Bezerra, Preto Ruívo que, desde que estivesse montado em seu cavalo, nada temia no pátio ou dentro do mato, queria mostrar que, apesar de velho como estava, não se trocava por muitos vaqueiros de vinte anos... Aprontou o relho, o chocalho grande(*) , limpou os arreios todos, a véstia de couro curtido, as perneiras, encheu o artifício de lã de algodão, cortou fumo, bateu a poeira do chapéu de couro, correu o barbicacho, olhou a ligeira, amarrou as peias nas correias da sela, revistou os loros, os estribos, o peitoral, as rédeas a silha, tudo.
De tardezinha, quando o sol ia desaparecendo, Preto Ruívo foi à cacimba, deu água ao cavalo, lavou-o, saindo, logo depois em busca de casa. Ali chegando, deu-lhe uma ração de milho molhado. Enquanto o cavalo comia, ele preparava os arreios, jantava, acendia o cachimbo.
À boquinha da noite, estava de marcha. Adiante o cavalo parou à margem de um córrego... Preto Ruívo, caindo do lado direito da sela, firmou-se no estribo... Depois continuou a viagem. Ali, acolá cantava uma toada para encurtar o caminho.

Nunca vi carrapateira
Botar cacho na raiz.
Nunca vi moça sorteira
Ter palavra no que diz.

E prosseguiu assim até se aproximar do bebedouro onde o barbatão costumava descer toda noite, ao sair da lua. Ali chegando, rumou em busca de uma quixabeira vizinha ao bebedouro, ficando de espreita. Apeou, desamarrou o cabresto da correia da sela, sentou-se e ficou segurando na ponta do cabresto. Um vento leve e brando roçava a folhagem escura da grande árvore que exalava um perfume doce e agradável. Os galhos, movidos pelo vento, formavam ruídos precipitados no espaço daquela noite fresca e saudosa.
Momentos depois saía a lua clareando as asperezas daquelas paragens desabitadas. Raios fulvos de luz caíam sobre a folhagem escura da mata, formando ondulações de um crespo quase agitado. Preto Ruívo ergue a cabeça, olha pela brecha de uma capoeira e vê passar, ligeiro e furtivo, como um gato do mato, um vulto escuro com rajas por cima do lombo e bargado dos peitos para a barriga.

Preto Ruívo levantou-se nas pontas dos pés, meio agachado. O cavalo acende as orelhas. Preto Ruívo amarra o cabresto na correia da sela, cochicha no ouvido do cavalo, passa-lhe a mão na cabeça, monta-se e sai arrodeando pela retaguarda. Vai pisando sobre ovos, receoso de espantar o bicho antes do tempo.

Adiante ouve, apesar de mil cautelas, um estaladeiro nos paus. O cavalo, contra a sua espectativa, começa a ginetear. Preto Ruívo o detém, passando-lhe a mão calosa pelas crinas ondulosas. Impossível, porém, detê-lo nos primeiros preparativos da corrida. É o barbatão. Preto Ruívo, mais uma vez, tenta parar o cavalo, esperando que o barbatão se aproxime da cacimba. Nesse transe angustioso da corrida há dois aspectos curiosos trabalhando fatores contrários. Primeiro, que o cavalo não se deixará mais domar pela cautela e prudência do vaqueiro, receoso de perder a partida. Segundo, que o estado psicológico do vaqueiro, aparentemente moderado, tentando refrear o animal para não espantar o barbatão, aguarda apenas o momento para se decidir entre uma e outra coisa: deixar que o touro tome a posição ideal para o início da corrida ou, caso contrário, atender instintivamente ao impulso natural do animal, indo com ele por cima de paus ou de pedras, entregando em grande parte a ele o resultado da carreira.
Mas, não! Em tudo na vida há sempre um meio termo. Na vida do campo também. Preto Ruívo tinha razão. Ceder totalmente aos impulsos violentos do seu cavalo, seria, na pior das hipóteses, precipitar a carreira, perdendo afinal o barbatão. De maneira que a sua prudência, o seu tato, detendo com paciência o cavalo, usando para isso de mil cavilações e cacoetes, tinha muita razão de ser. E assim foi parando, detendo o cavalo, até que o barbatão se aproximou da cacimba.
Quando o bicho foi entrando, Preto Ruívo gritou. O barbatão perdeu os sentidos e zarpou pelo lado direito do bebedouro, num trancado formidável de paus. Ao grito do vaqueiro, o cavalo, atarantado com o quebradeiro do mato, ergueu-se num salto de fera, voando por cima de uma moita de jurema florada, levando nos peitos o entrançado gigantesco das jitiranas. Preto Ruívo gritou novamente; - Ê boi! - E o bicho espichou-se numa carreira desabalada. Num abrir e fechar do mato, quando o barbatão procurava escapulir-se das unhas do vaqueiro com o seu cavalo, o negro, sagaz que só ele, joga o cavalo por cima de uma moita de xique-xique, batendo na anca do barbatão espritado. E gritou contente: - Ê bicho danado!!!... - Atrás, o mato abria e fechava numa velocidade sem limite.

Quando Preto Ruívo sentou a mão de novo na anca do barbatão, o bicho espritou-se. Largou-se em disparada louca por cima do cipoal bravio, deixando atrás uma nuvem de poeira grossa e cinzenta. Ao sair numa capoeira pequena e estreita. Preto Ruívo enrolou a mão na saia do barbatão e segurou com força e com fé. Abrindo o cavalo num ímpeto de raiva, pegou o cavalo nas esporas e gritou ao bicho, jogando-o por cima de uns troncos de catingueira.

No chão o touro, Preto Ruívo, ágil como um gato do mato, pulou embaixo da sela com o relho na mão e amarrou-o. Botou o chocalho grande, peou-o e tangeu-o para um lado da capoeira.
A lua com seus raios fulgurantes clareava aquela cena bravia, cheia de heroísmo e poesia campestre.
Preto Ruívo, cansado, deu um suspiro prolongado. Puxou o currimboque do bolso da véstia, tomou uma pitada, acendeu o cachimbo e ficou ali, parado, de cócoras, olhando o suor que corria simultaneamente dele, do cavalo e do boi.
Em vista da hora avançada, Preto Ruívo resolveu pegar uma "madornazinha" enquanto clareava o dia. Assim fez. Encostou a cabeça no tronco de um pau e adormeceu. Quando acordou, o sol vinha saindo. Levantou-se, bateu a poeira da véstia, sacudiu o chapéu, arrumou tudo, tangeu o barbatão e foi andando pelo aceiro do mato até sair na estrada. Antes do almoço, chegava Preto Ruívo à Fazenda Alemão, de propriedade do Coronel Camilo Bezerra, pai de Julião, com o barbatão à frente.
De muito longe, já o povo da redondeza tinha ouvido o toque do chocalho grande e começava a juntar-se na frente da casa para ver e saudar o heroísmo de Preto Ruívo.
A cada pancada do chocalho estrugia um grito de louvor a Preto Ruivo, partindo da assistência, postada na frente do pátio. Quando não era o chocalho grande, era o aboio magoado e dolente do negro, gaguejado, de mistura com uns tons profundos de saudade, que vinha endoidecer aquela aglomeração.

Um moleque que estava trepado no mourão da porteira, dedo ao ouvido, aboiando insistentemente, gritou de repente: - Lá vem! Lá vem! - A multidão explodiu em entusiasmo. Houve uma algazarra infernal. Daí a instantes, o eco sonoro do chocalho grande crescia aos ouvidos da assistência e o aboio do Preto Ruívo, dedo ao ouvido, desencavava da memória do povo cenas extraordinárias de vaquejadas e ajuntamentos, vividos pelos seus amigos em épocas remotas.

Ao assomar ao pátio do curral, Preto Ruívo soltou um daqueles aboios muito seus e do seu feitio que arrancou lágrimas da multidão. O povo alvoroçou-se, abrindo um semicírculo por onde deveria passar o touro com o herói daquela proeza pouco vista e conhecida naquela terra.
Meninotes vadios e medrosos trepavam-se nas grossas carnaubeiras deitadas horizontalmente, formando o curral. Preto Ruívo apeou-se nos braços do povo, entre vivas e papoucos de fogos-do-ar. Desse dia em diante ficou sendo considerado o maior vaqueiro da redondeza.
Ainda hoje nas ribeiras do Açu e de Macau, quando se fala em façanhas heróicas da vida do campo, em escaramuças de vaquejadas, pegas de barbatões, é o primeiro nome que avulta, cheio de glória e de vida: PRETO RUÍVO, VAQUEIRO DO CORONEL CAMILO, DONO DA FAZENDA ALEMÃO.
A CARNE DE XARQUE EM OFICINAS


Gilberto Freire de Melo
Escritor e "Beradeiro" de Pendências, Várzea do Açu-RN


Na tentativa de ampliar as reduzidas informações da história sobre a povoação de Oficinas, no atual município de Carnaubais, na Várzea do Açu, demo-nos ao trabalho de vasculhar alguns registros, trazendo a público detalhes que caracterizam a existência de uma indústria - a primeira no Brasil - com que conviveram nossos recentes antepassados.
Como faz parte da história sócio-econômica da região, fazemos questão de registrar, para conhecimento de nossa geração contemporânea.
Manoel Rodrigues de Melo, foi quem mais se aprofundou nos fatos que geraram e mantiveram, por não se sabe quanto tempo, desde que não se conhecem os primórdios do seu nascimento. Sabe-se, no entanto, que já existia em 1775, conforme referência do então "Governador e Capitão-General José César de Menezes, de Pernambuco, em sua Breve Notícia da Capitania do Rio Grande do Norte, na qual figura uma descrição da Ribeira do Açu", adiante transcrita.
Conforme nos descreve Manoel Rodrigues de Melo, as últimas edificações de Oficinas, quando já desativado seu empório industrial, e desabitado o lugarejo, desapareceram com as inundações do rio Açu, em 1924. O início das atividades, e o período de duração não foram registrados, fatos que nos levaram a percorrer os labirintos, os baús e as prateleiras onde se amontoam registros históricos regionais, sem ainda encontrarmos esses dados, sumamente importantes para a história sócio-econômica da Várzea do Açu e de seus desdobramentos.
Felizmente, Olavo de Medeiros Filho, outro incansável garimpeiro das minúcias históricas da região, autor de "RIBEIRAS DO ASSU E MOSSORÓ - Notas para sua história", nos traz alguns subsídios indispensáveis, resultado de suas pesquisas arqueológicas. E, nas páginas 11 e 12, do mencionado trabalho de José César de Menezes, bateado nas Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, nosso conterrâneo Olavo de Medeiros Filho, o faz seguinte registro que, embora não satisfaça a nossa curiosidade, se refere a épocas em que já era conhecida localidade da charqueada.
Esta Ribeira tem vinte huma legoas de Costa na Fazenda do Jabota azo Sul della, que divide com a ribeira do Apodi, e correndo para o Norte buscando a Marinha até a dita Costa na ponta do Mel em quatro gráos e vinte e dous minutos de Latitude, e trezentos e quarenta e cinco gráos e vinte minutos de Longitude, tambémdivide com a mesma ribeira do Apodi e correndo o rumo de Leste até o Porto de Agoa maré em quatro grãos, e vinte e cinco minutos de Latitude, e trezentos e quarenta e seis grãos e sete minutos de Longitude, divide com a ribeira do Norte, e virando ao rumo do Sul vai até a Fazenda do Sanha-há, e o riacho chamado garganta do Padre David, onde vai confundir em uma e outra parte com a Capitania da Parahiba, e a ribeira do Siridó: Há esta Ribeira de algum commercio, por virem todos os annos três ou quatro barcos às officinas a factura de Carnes secas e couramas (sublinhado pos nós): Tem uma povoação com sua Freguesia a qual he a seguinte: Povoação e Freguesia de S. João Baptista da Ribeira do Assú.
(MENEZES, José César de - Idea da população da Capitania de Pernambuco, e de suas anexas, extensão de suas costas, Rios e povoações notáveis, etc. Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1924 (Págs. 11 e 12).
É o registro que temos de mais antigo da existência da indústria da Carne Seca (charque) em Oficinas, no atual município de Carnaubais, que a revista Veja, em meio à década de 90, do século XX, informou ser no Ceará. Nosso protesto, em carta enviada àquela revista, corrigia, afirmando que, talvez por desconhecimento geográfico, e dada a proximidade, alguém tenha informado ser no vizinho Estado do Ceará, o que fez, inclusive, alguém, igualmente desavisado, chamar de Carne do Ceará a charque produzida no Rio Grande do Norte.

São informações dignas de fé, fundamentadas em registros históricos do tempo de sua existência que nos põem a salvo de dúvidas e de questionamentos sobre a veracidade.
Em sua antologia sociológica sobre paisagens, tipos e costumes do Vale do Açu, intitulada VÁRZEA DO AÇU, de 1940, adquirida por nós já em terceira edição, de 1979, MANOEL RODRIGUES DE MELO, o mais respeitado cronista do baixo vale do Açu, nos convoca a reviver, com ele, os atos e os fatos que fazem vibrar de entusiasmo o espírito varzeano de quem teve a felicidade de aqui respirar a fragrância da palha da carnaúba, privilégio exclusivo de nossa região. Sobre oficinas, ele relata, com riqueza de pormenores, a fotografia das ternuras e das confraternizações humanas e sociais que não se dobram às asperezas que infernizam a vida dos nordestinos.
Assim, ele retrata a

FESTA

ALVORECIA A MANHÃ DE 19 DE MARÇO. A POPULAÇÃO de Oficinas despertava sob forte e estridente salva de roqueiras(*). Casas desalinhadas e confusas apresentavam, porém, aspecto festivo. Começavam a chegar os primeiros carros de bois trazendo as famílias ricaças da terra. Mulos possantes e gordos passavam sob o peso formidável das malas de "doces" rinchando pelo meio da rua. De longe em longe, ouviam-se tropeladas(*) de cavalos esquipadores(*), passando de estrada afora, quebrando a monotonia do lugarejo provinciano. À frente da capelinha branca, bafejada pelo vento fresco daquela manhã de março, esvoaçavam bandeirolas de papel de seda engalanando o adro com suas cores bizarras e vistosas. A banda do Açu executava formosos trechos na passeata da alvorada, despertando curiosidade nos transeuntes. As bodegas e as casas de tecidos abriam as portas alegres expondo cuidadosamente os seus mostruários rústicos. A povoação se movimentava por todos os lados apressando os preparativos para a festa.
Às seis horas da tarde começaram a passar as primeiras pessoas para a festa. A família de "Seo" Filipinho já ia saindo no carro de boi. As meninas do velho João Severino, o povo de Chico Ferreira, muita gente já ia passando.D. Marocas recomendou ao preto João Luís:
- Você não se esqueça de tirar a carne do varal, não, João Luís; tenha cuidado na janta dos "meninos" (homens feitos) para o cachorro não comer, já ouviu?
João Luís respondeu:
- Sim, senhora!

Adiante, uma das "meninas" (moça feita) gritou:
- João Luís, vá buscar a roupa dos "meninos" que está na casa de comadre Maria Rita, viu?
- Sim, senhora! Respondeu João luiz, novamente. E o carreiro deu sinal de partida.
- Boi bargaaaado!!!(*) - (lepo), o chicote estalava com força no lombo do boi. O carro saiu, chiando ali, piando acolá, até se encobrir na curva do beco. A passarem pela Ponta da Ilha, Samuel já estava se aprontando com a família. Houve troca de saudações, garridice de moças, gritaria. Maria de João Alves estava na porta, bucho à boca, com o menino escanchado no quarto, olhando a passagem da família de "Meu Padrim Filipim". O povo do Queimado já vinha chegando também, uns a pé, com os sapatos amarrados na mão, trouxas de roupa engomada no braço, outros a cavalo, conduzindo mulheres e moças na garupa, enquanto outros, amantes da mulher e dos filhos, levavam dois, três entre a garupa e a lua da sela.
Um João Alves de Melo, teria bons quadros para a objetiva de sua Kodak. Note-se o converseiro zunindo de estrada afora. De longe se ouvia o alarido.Pareciam que tinham bebido água de chocalho. João Belmiro passou tangendo uma jumenta carregada de "doces" das Quitérias. Sinhá dos Anjos tinha trazido um bocado de "doce" de Macau para vender na festa das Oficinas. Júlio Hermosa tinha chegado de "noco" c om um circo que era uma coisa do outro mundo. Vitória e Josefina pulando nos trapézios, dando pulos mortais, fazendo ginástica, dançando no arame, era de fazer cabra perder a bola. Júlio Hermosa, homem simpático e atraente, cabeleira longa e comprida, olhos castanho-escuros, pele moreno-bronzeda, trajando bem, usando culotes, com todo o rigor da moda, assim com ares de engenheiro que sabia muito, conversa elegante e desembaraçada, era só em quem se falava naquele tempo. Ocupou por vários meses o comentário malicioso da Várzea...
Naquela noite, lá estava ele, na sua pose de Dom Juan desconhecido, vestido na sua fatiota de casemira pardo-escura.
E o povo começava a chegar de todas as bandas daquele mundão semi-selvagem, admirado com a cabeleira do homem e com a beleza das moças do Circo.
Veio gente de toda a parte. Das Pendências, do Rosário, do Alto do Rodrigues, do Xambá, do Carnaubal, da Tabatinga, de toda a redondeza, enfim.
Oficinas era, naquela noite,m comparando mal, um grande formigueiro em movimento. Entrava gente e saía gente, cargas e mais cargas eram arriadas no meio da rua, cavaleiros subiam e desciam pela estrada do Curralinho; nunca se viu uma das festas nas Oficinas tão rica de aspecto, de movimentação de dinheiro e de gente. Henry Koster, acaso fosse vivo e andasse por ali,teria anotado coisas do arco-da-velha.
O sino da capela tocou a primeira chamada para a novena.Quem vinha, de longe, ouviria, por certo, a pancada do sino reboando de Várzea a dentro, cujo som acordava na alma dos convivas as delícias da festa passada.A música já estava no patamar quando o povo foi-se aglomerando. Instantes depois, a capela estava cheia. Começou a novena. As cantoras entoaram os benditos e a música acompanhou. Os foguetões pipocaram no ar. O povo ajoelhou-se. Nessa noite o leilão foi de feder a fogo. Depois da novena o patamar da Capela ficou coalhado de gente. João Crisóstomo começou a gritar:

- Quanto me dão pelo rebuçado(*) oferecido pela donzela Maria Rosa? Quanto me dão?
O namorado da donzela que ficava lá fora por trás do povo, na sua velhacaria de burro enjeitado, soprava no ouvido de algum morador e mandava botar oreço no rebuçado. Do outro lado aparecia o segundo pretendente ou "algum cabra que gostava de estrepar os outros" e começava a botar dinheiro no objeto só para fazer mal ao outro.
Essa contendas quase sempre iam muito longe. Um simples cravo de donzela poderia dar cem ou duzentos mil réis, moeda daquele tempo. Entre os ricaços da terra, porém, a coisa era diferente. Depois que eles embirravam para tirar um objeto em leilão não havia quem os demovesse daquela intento. Um copo de cerveja poderia elevar-se até a duzentos mil réis, conforme a disposição dos contendores. Na maioria dos casos, não era que o objeto tivesse o valor da oferta, e sim o dever que tinham eles de zelar o seu nome, a sua posição social oi econômica. Outras vezes era uma pequena quebra de cordialidade, um caso pessoal, um amor que estava em jogo, um objeto que se dava por conveniência. E que se queria reaver por todos os meios. Muitos o faziam também por mero lustre, diletantismo, outros ainda como acontecia com os rendeiros e meeiros do Baixo-Açu, como prova de estima e gratidão aos patrões. Terminado o leilão, a festa continuava em paz até o dia amanhecer.Todos brincavam e se divertiam na maior alegria e camaradagem. A cerveja lavava os balcões de todas as bodegas e botequins. O bozó e o caipira passavam a noite batendo. A jinjibirra e aloá exalavam um cheiro enjoativo no ar. O estrato Flor de Amor e a Oriza tinham gasto naqueles dias. Curió e Antônio de Espada, dois repentistas de fama da terra, passavam a noite bebendo cachaça e fazendo versos de improviso aos pés dos balcões. Décimas, loas, tendo por tema a festa, a cachaça, os motivos mais simples e banais. Os matutos de Tabatinga tinham vindo com cargas de aloá para vender na festa e ali estavam com as ancoretas trepadas em cima de caixões, gritando:
- Óia o aloá(*) bom!
- Óia a jinjibirra(*)!

O menino do caipira soltava um dito:
- Óia o caipira. Quem menos bota mais tira!
As doceiras estavam com as malas de doces expostas à venda. A praçuela cheia de botequins, o povo andando pra cima e pra baixo, um converseiro zunindo grosso, uns bebendo, comendo, outros fumando, prosando e dançando.

Um vendeão da Pendência berrava com força:

- Chega, freguesia, prô moca de Sinhá Maria!
Os soldados mata-cachorros que tinham vindo do Açu andavam rondando por ali, arrotando lembrança e querendo introduzir regras novas na vida do povo da Várzea. Zé Quingu ficou logo zangado com o inxirimento daquele soldado arregalando os olhos para ele, como se ele tivesse medo de careta. Naquela noite não sei que diabo de veneta deu em Chico de Barros(*) que ele foi ter na festa das Oficinas. Quando ele apareceu no meio do povo as mulheres começaram a cochichar umas com as outras, acompanhando com os olhos os passos do valentão da Tabatinga. Ali, acolá, ouviam-se comentários baixos, no ouvido uns dos outros, como quem estava segredando alguma coisa.
- Aquele é Chico de Barro!... - diziam.
- Cala a boca, menina!... Tranca essa língua!... - diziam outros meio assustados.
E, num refrão de susto e de medo, ouviam-se ainda essas vozes:
- Virgem Nossa Senhora, me valha São José das Oficinas, não permitais que haja barulho!...
Foi assim que se propagou de repente a notícia de que Chico de Barros estava na festa.
Mas o galo só canta grosso no seu terreiro. Chico de Barros foi à festa mais com o fito de se divertir do que mesmo de fazer arruela. Tinha bons amigos nas Oficinas, gostava dos Filipe, cuja amizade era velha e por isso nenhuma vontade de arruaça o dominava. Aquilo tudo era besteira do povo.
Logo desapareceu a desconfiança de todos quando o viram na maior camaradagem com os Filipe, braços dados, bebendo, prosando, naquele risasdaria estrepitosa e cheia de verve.
E a festa continuou calma, com aquele zunzum medonho de gente pra cima e pra baixo, até a hora da missa.
Eram cinco horas quando badalou a primeira pancada do sino chamando os fiéis. O altarzinho foi armado no patamar da Capela denotando o gosto artístico e o devotamento que mereciam ali as coisas de Deus. O povo se comprimia todo ali; pararam todos os carrocéis, os caipiras e os bozós; Um silêncio enorme encheu toda a atmosfera vazia! O padre sobe ao altar. Passa um sopro de vitalidade por aquelas frontes desfiguradas e amarelecidas pelo sono e pela inhaca da cachaça, da cerveja e do vinho do Porto. O vigário sobe ao púlpito e faz um sermão, em estilo água-de-rosas como que selando os folguedos da noite. Em seguida anuncia a hora dos casamentos e batizados que são emglobadamente de cinqüenta a mais. Terminada a missa, todos se dirigem para as malas de "doces" a fim de levarem uma lembrança da festa.
Outros compram garrafas de vinho do Porto para dar de presente a algum amigo que não veio à festa, ou à preta velha que ficou por dona da casa, tomando conta dos meninos pequenos e dos bichos de chiqueiro. Sequilhos, doces secos, bolo de milho, pé-de-moleque, grude, alfenins, de toda versidade(*), eram todos arrebatados depois da missa. Nestes últimos, porém, havia inúmeros modelos atraindo os olhos cubiçosos dos meninos ricos e das moças ingênuas e casadouras da Várzea. As grandes rosas com as pétalas abertas, os cravos alvíssimos, os cavalinhos bem ripados, os carneiros cheios de lã, os patinhos ariscos presos em conchas ovais, os abacaxis e dezenas de outras "formas" interessantes formavam o mundo dos meninos e das moças que iam à festa. Não só dos meninos e das moças, mas de todos, dos pais, das mães, das matronas gordas e ricas, cheias de ouro, de trancelins, de voltas, anéis, grampos e marrafas, usando echarpes de seda fina, botins de cano comprido, espartilho, totós, leques e todos os ademanes da época e da moda.
A venda de todas essas guloseimas era uma velha tradição ali existente que ainda hoje faz parte das festas da região.

Outro aspecto curioso da festa do padroeiro de Oficinas, como de todas as festas da redondeza, era o infalível passeio a cavalo, dos melhores cavaleiros e cavalos da região.
João Piolho, Sebastião Belo, José Felipe e tantos outros de gosto e de fama, montavam nos seus cavalos esquipadores e saíam fazendo piruetas pelo meio da praça(*) para todo o mundo ver, admirar e aplaudir. O povo ficava parado, no patamar da Capela, na frente dos botequins, nas janelas das casas, no meio da rua olhando a parelha(*). O cavalo de João Piolho parecia uma rede balançando. Ele tirava o freio e o cabresto e o cavalo saía marchando com a mesma naturalidade de quem não estava fazendo nada... O caipira e o bozó continuavam a bater depois da missa, até o sol alto.O povo regressava às suas vivendas distantes, cochilando pelo meio da estrada. Os cavaleiros passavam de magote, esquipando e correndo de estrada afora,, matando o bicho(*) nas bodegas, riscando os cavalos(*) nas portas dos amigos, naquela prosa danada que não tinha fim. As famílias voltavam em cima dos carros de bois, cochilando com a quentura do sol batendo de chapa na cara das moças, das velhas, das matronas pesadas e gordas, dos meninos, das negras, de todos que voltavam da festa, moles de sono e de enfado. Assim que chegavam em casa caíam dentro da rede que nem uma pedra dentro dágua. Ninguém tivesse o trabalho de chamá-los para o almoço, porque o sono, a ressaca da festa, ajudados pela embriaguez do vinho, da cachaça e da cerveja, eram muito mais poderosos do que a fome. As grandes fazendas, tão movimentadas nos dias regulares, pareciam, nesses dias, um ermo desabitado. A povoação se fechava toda com os moradores dormindo dentro das casas.Uma tristeza imensa invade o lugar. O padre regressava ao Açu, depois dos casamentos e dos batizados. Não se via vivalma andando na rua, indicando que a festa se tinha acabado".


GLOSSÁRIO

(*) Roqueira - O autor talvez queira referir-se a "ronqueira" Espécie espingarda, arma de fogo, que, ao disparar, produz som troante, rouco, roncador, ouvido além dos limites de sua ação.

(*) Tropeladas - Derivado de "tropel". Som produzido pela marcha cadenciada dos cavalos esquipadores, no barro duro da Várzea.

(*) Cavalos esquipadores - Uma espécie de cavalos adaptáveis às exigências do "mestre domador" que os ensinava a marchar num trote especial, cadenciado, mais largo, entre o chouto e o galope. Joca de Melo, no Saco, desfilava em seu cavalo esquipador, conduzindo, na mão, sem derramar, um copo de cerveja.

(*) Parelhas - Par de cavalos esquipadores que se exibiam em conjunto.

(*) Padrim Filipim - O autor se refere a "Filipim", um ricaço da região, tronco-raiz da família Felipe, ramificada na região. Como exercia liderança e patriarcado na Várzea do Açu, apadrinhava, batizando os filhos da maioria dos habitantes.

(*) Aloá - Suco, ponche, jinjibirra, ou garapa de frutas (às vezes da casca do abacaxi, por exemplo), adoçada com açúcar, que se vendia nos botequins, nas feiras ou nos ajuntamentos de pessoas em movimento.

(*) Chico de Barros - Um tipo popular da região do Baixo Vale do Açu, dado a arruaças, encrenqueiro, temido pelos habitantes da região, que foi assassinado por Antônio de Gila, no Chambá, após desfeitear uma sua irmã.

(*) Matando o bicho - Bebendo cachaça. Diz-se do ato de tomar "umas e outras".

(*) Riscando os cavalos. Ato de fazer interromper a marcha dos animais, parando-os bruscamente. Diz-se "riscar o cavalo", pelo fato de a parada inesperada produzir riscos dos cascos do animal, levantando a poeira do solo local.

(*) Versidade - Diversidade. Aqui o autor é fiel à linguagem dos varzeanos.

(*) Praça - Uma demonstração de quanto era importante a povoação, cuja sede era dividida em praça, ruas, etc.
veja também de Gilberto Freire: Cândio Cambão

http://www.portodomanguern.com.br/cultura.html

À memória de:

Luiz de Galdino
Zé Piolho
Camila Olegário Freire
Absalão Pinheiro Maia
Manoel Antônio da Fonseca
Joaninha de Pipiu

Varzeanos antológicos que respeitavam a pureza e a liberdade do linguajar sem preconceitos, mantendo, apesar da censura, um clima que aceitava o vocabulário do beradeiro tal como se apresentasse.

O autor
APRESENTAÇÃO

O cantador - é bom deixar bem claro - não é cantor, aquele que apenas canta, chamado de intérprete. Há conotações e peculiaridades próprias que identificam o CANTADOR, que, além de cantar, faz de improviso os versos com que trabalha. Canta, compõe, cria e produz. Quando aparece nas recomendações gramaticais, cantador é adjetivo: O pássaro cantador, o carro-de-bois cantador, etc. No caso de poeta repentista, violeiro, se diz CANTADOR e se usa como substantivo - o cantador. É o poeta da viola, o repentista, uma arte que só se concilia com o cantador. E são cantadores todos os poetas violeiros, improvisadores, repentistas, produzidos por este Nordeste que, através deles, viu nascer e morrer cantando as dores e as alegrias suas e de seu povo.
Encontramos em Guerra Junqueiro, um dos mais nobres poetas portugueses, contemporâneo de Camões, no prefácio que fez a um trabalho de um de seus confrades, intitulado O Cantador de Setúbal - uma referência que glorifica esse profissional. Ele diz: "Que título augusto, que nome ideal para um vivente - O Cantador! Que nome ideal para um destino! Cantar o riso, o beijo, o olhar, a dor e a lágrima. Como eu te invejo, cantador!"
Em Orlando Tejo, autor de Zé Limeira - O Poeta do Absurdo, vemos o que constitui a glorificação do poeta improvisador: "Os cantadores constituem imensa legião de homens que cantam, sonham, sofrem e brincam de viver no mundo, pescando estrelas, caçando ilusões, plantando tardes, colhendo manhãs, levando a sua mensagem sutil e profunda, tímida e vigorosa, ao povo ávido de poesia que os ouve embevecido".
Perpetuaram-se, na literatura do Nordeste, como cantadores, nomes que honram a nossa cultura, cantando e escrevendo, como: Fabião das Queimadas, Romano da Mãe Dágua, os irmãos Dimas, Otacílio e Lourival Batista, Zé Pretinho do Piauí, Cego Aderaldo, Oliveira de Panelas, Manoel Calixto, Eliseu Ventania, Chico Traíra, os irmãos João, José e Sebastião Zacarias, Alípio Tavares, José Alves Sobrinho, Inácio da Catingueira, Severino Ferreira, Zé Limeira, Cândio Cambão, e tantos que o tempo levou, mas deixaram sucessores que honram a sua memória. E estão ainda por aí: Ivanildo Vilanova, Antônio Francisco, Crispiniano Neto, Antônio Sobrinho, Joaci Zacarias, Alípio Tavares Filho, Paulo Varela, os mais próximos de nós, e uma legião de outros que transmitem literatura tradicional, consagram a nossa cultura e dão ao Nordeste brasileiro a sua roupagem para acesso aos centros culturais, às academias hoje existentes no Brasil e alhures. Está aí Antônio Francisco, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, com muita honra para o Rio Grande do Norte e para o Nordeste brasileiro.
E o ritmo, o estilo não é um só. Há os tipos de conjunto de versos, nomeados de acordo com a técnica, o ritmo, o diapasão, o tema, o número de versos, o número de sílabas, que têm padrões, características e melodias próprias, porém tudo sem fugir ao referencial que é CANTORIA e seus artistas são CANTADORES. Cantador ou cantoria se refere exclusivamente ao produtor e ao produto da improvisação em versos rimados, cantados sob diversas formas: desafios, chamados pelejas, como a do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Piauí, Riachão com o Diabo, na cidade de Açu, epopéias históricas, trágicas ou cômicas, como Os Doze Pares de França; romances e amores locais ou de outros horizontes, como a história do Pavão Misterioso; e uma antologia de louvações ou de críticas ao cotidiano. São apresentados, geralmente, em duplas de cantadores ou em unidades isoladas, que se esmeram no ritmo, na rima, na métrica e no palavreado, um linguajar próprio, tudo dentro dos padrões da cultura local.
O tipo de versos, de acordo com a formação e a melodia é que identificam o sistema que pode ser baião, martelo, galope, quadrão, sextilha, sete-linhas, mourão, mourão-em-sete, você cai, mourão voltado, quadrão em oito, quadrão em dez, quadrão à beira mar, martelo alagoano, gabinete, toada alagoana, oitava rebatida, nove palavras por seis, gemedeira, galope à beira-mar, martelo agalopado e glosa. São as principais formas como se apresenta a cantoria no Nordeste, onde nasceu, e se espalhou hoje pelo Brasil inteiro.
Manoel Bandeira, o grande autor de VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA, certa vez, em Pernambuco, depois de ouvir um festival em que se apresentavam, dentre outros não menos famosos, Dimas e Otacílio Batista, confessou, contrito, a sua incompetência, diante daqueles gênios, e publicou, em 1937:

"Vi cantar Dimas Batista,
Otacílio, seu irmão.
Quer a rima fosse em inha,
Quer a rima fosse em ão,
Caíam rimas do céu,
Saltavam rimas do chão.
Tudo muito bem medido
No galope do sertão.
Saí dali convencido
Que não sou poeta não".


CÂNDIO CAMBÃO - Irreverente, porém poeta


Quem conhece a literatura hoje chamada de cordel sabe que os versos não se limitam a quadras, a sextilhas, ou a alguns outros padrões isolados da poesia universal. O Cantador, como é chamado o poeta repentista, pode fazer seus versos de acordo com as circunstâncias e exigências do momento. O seu universo se restringe ao Nordeste brasileiro. Antigamente, quando se falava em versos ou estilo alexandrino, não havia dúvida. Tratava-se do soneto - aquele poema inconfundível, de 14 versos, alinhados em dois quartetos e dois tercetos. Ainda hoje, quando se fala em trova, todos sabemos que são estrofes de quatro versos, de sete sílabas cada verso e todos os quatro com rimas do primeiro com o terceiro e do segundo com o quarto.
CÂNDIO CAMBÃO, nunca se soube se teve, de batismo ou de registro, outro nome ou sobrenome. Também nunca foi obrigado a exibir documento de identidade. Sua identidade era a viola que representava o grande poeta repentista da Várzea do Açu. Era um tipo especial. Apresentava-se nas funções com uma viola maltratada, porém super afinada. Vestia um paletó, que não tinha mais cor original, mas que, pelas dobras de baixo da gola dava a impressão de haver sido branco. Estava sempre de pés descalços.
Abraçava carinhosamente a sua viola, com veemente apreço, por quem demonstrava raríssima e incondicional afeição. Impunha-se pela personalidade, pela altivez de seus versos, mesmo irreverentes; pela liberalidade de sua poesia; pela intimidade com a população; pela auto-suficiência dos temas e dos motes que glosava num improviso sem titubeios; enfim era um beradeiro autêntico, um poeta sem fronteiras e sem preocupações com os estilos ou com a censura.
Nas memoráveis cantorias que estrelou, sozinho ou acompanhado, tinha por hábito abrir os trabalhos com estes versos:

Eu aqui me chamo Cândio
Por apelido Cambão,
Moradô no Logradô,
Manicípo do Alemão
Se não tem com que me pague
Eu recebo inté feijão.

Sabe-se que tinha dois filhos. Um, chamado Pascoal que às vezes aparecia cantando com ele e um outro, chamado Juvenal, que vivia de fazer recados, e de entregar encomendas a troco de um pão doce que recebia como recompensa. Quando era solicitado para uma empreitada dessas, perguntava ao empreiteiro como queria que fosse: de avião, de motocicleta, de caminhão ou de cavalo. Conforme a preferência do mandante, ele saía de Porto do Mangue para a Redonda, uma distância aproximada de 20 quilômetros, exibindo a posição do transporte em que imaginava estar viajando. Se fosse de avião, ele iria de "asas abertas" desde a origem até o destino. Às vezes, o dono da encomenda perguntava a viajantes que o encontravam no percurso e recebia informações de que o haviam encontrado na mesma posição usada ao iniciar a jornada.
Andarilho, nômade, sem origem e sem destino, pernoitando onde lhe permitissem arranchar-se, Cândio Cambão, tendo por companhia apenas a sua viola, aceitava desafios e convites para cantorias, sem preferência de temas que podiam ser história, geografia, política, religião, as asperezas e as ternuras do varzeano, enrolava tudo no seu linguajar. Às vezes, até debates conhecidos por PELEJAS, em que se discutiam em versos rimados e metrificados, discorrendo sobre a conduta, os atributos e o currículo pessoal, em que os desaforos de parte a parte tinha a preferência da platéia.
Não costumava ser chamado duas vezes para cantar na mesma residência, vez que os padrões de sua linguagem não se conciliavam com as exigências e com os conceitos de moral das famílias da várzea do Açu. A ele pouco interessava se fosse acolhido até o final da função ou se fosse expulso pelos donos da casa. Alguns varzeanos, porém, como Manoel Antônio da Fonseca, faziam questão de reunir familiares e vizinhos que convidava para um festival de poesia, estrelado por Cândio Cambão. Dava imensas risadas e incentivava os assistentes a aplaudir o vate, o gênio, o poeta e seus versos esplendorosos. Quem não concordasse que saísse.
Certa vez, no Guaxinim, uma praia perto de Logradouro e de Porto do Mangue, era época de eleição e os candidatos contrataram o tabelião de Pendências, Absalão Pinheiro Maia, para fazer, de uma só vez, 25 casamentos naquele lugarejo. Reuniram-se, no Grupo Escolar, os noivos, os convidados, as testemunhas, os parentes e os curiosos, sob a liderança de Joaquim Maria, um funcionário graduado da salina Matarazzo, que mantinha considerável liderança no povoado. Presentes também os candidatos, Dr. Limeira, a vereador, no município de Macau, e Dr. Gerôncio Queiroz, a deputado estadual. Não se falava ainda em compra de votos, corrupção eleitoral, nem coisa parecida. O pecado desses eventos com finalidade de angariar sufrágios, se chamava "voto de cabresto" que não era tão grave como querem mostrar os "puristas" de hoje. Não se anulava eleição nem se cassava mandato. O negócio corria mais frouxo.
E os cinqüenta noivos reunidos, seus parentes e os habitantes da comunidade se comprometiam a votar, e votavam mesmo, com os candidatos que patrocinavam eventos dessa natureza.
Dentre os 25 pares de noivos ali reunidos, estava Manteiga, um cidadão que na sua mocidade havia sofrido um castigo de "castração no cepo", por questões de enxerimento com a filha dum fazendeiro, na Várzea do Açu. Como não se perdoavam pecados dessa natureza, a pena imposta ao inditoso Manteiga foi a mutilação de seus testículos no macete, uma cirurgia em que se punham os ovos do condenado sobre um toro de madeira e, com outro, se batia até inutilizar os órgãos reprodutores do infeliz. Assim mesmo. Sem qualquer anestesia, Não há necessidades de se nomear os verdugos de Manteiga, pois em qualquer esquina do universo varzeano se conhece a história e se sabe quais foram os seus autores. É só assobiar.
No ato de celebração das bodas, tomando conhecimento de que dentre os nubentes se encontrava Manteiga, o antológico Absalão chamou-o pelo nome, mandou levantar-se e perguntou à noiva :
- Mulher, tu vais casar com Manteiga, mesmo sabendo que ele foi capado?
Não houve necessidade da resposta da noiva que, se foi dada, não foi ouvida, em virtude da estrondosa gargalhada da platéia. Mesmo assim, não deixou Manteiga de se casar. Só que, acabada a solenidade, por obra e graça de Joaquim Maria, apareceu no recinto, com sua inseparável viola, o poeta da região que não fazia falta em ajuntamentos comunitários. Para abrilhantar a consumação das bodas, foram os presentes convidados a tomar umas talagadas na bodega de Zé de Joaninha, ali na praia, para o que não poderia faltar Cândio Cambão, o mais afamado repentista, o cantador mais liberal, de improvisos mais coerentes com a linguagem dos beradeiros, com os costumes e com os padrões de vida de toda a ribeira do Açu, até as margens do Oceano Atlântico, ou para além se tivessem como divulgar. Que não precisava de concorrente, de companheiro ou de colega para fazer brilhar os seus versos, os seus temas, as suas rimas, os seus galopes, tudo ao sabor da população que o assimilava, embora fosse censurado nas casas de família, onde os costumes, os hábitos, a moral não se conciliavam com a liberalidade irreverente do artista que não se apresentava uma segunda vez, dada a prosaica e peculiar qualidade de seu linguajar e de suas rimas.
Se Zé Limeira, descoberto por Orlando Tejo, lá na Paraíba, foi considerado o Poeta do Absurdo, por tiradas dessa natureza, não era favor nenhum nomear Cândio Cambão O ABSURDO DOS POETAS.
Naquele dia memorável, o tema era o casamento de Manteiga. Acomodaram Cândio Cambão num canto do alpendre, abriram-se as garrafas e tome versos. E tome cachaça. Sem companheiro que não lhe fazia falta, Seu Cândio, trajado tipicamente: chapéu de palha de abas não muito pequenas, calça de mescla azul bem surrada, camisa de peito aberto e paletó igualmente meio envelhecido pelo uso e pela falta de sabão e de quaradô, sem calçados nos pés, desde que não era comum esse uso nas areias da praia, começou e seu vozeirão passou a ser ouvido além da costa, das ondas e dos manguezais, mais ou menos assim:

Eu aqui me chamo Cândio,
Por Apelido Cambão,
Nascido no Logradô,
Manicípio de Alemão
Manteiga casou capado,
Só milagre de eleição.
Já vi milagre de santo,
De Padre Ciço Romão
Mas casá home capado
Na véspa de eleição,
Ou é astuça do demo
Ou coisa de Absalão.
Já vi a Mãe-de-Pantanha
Revirá o meu sertão,
Preto Ruívo de noite
Mascarar um barbatão.
Mas casá home capado,
Só milagre de São João.
Já vi coisa nesse mundo
De cortar meu coração,
Vi couro de lobisome,
Rasto de alma no chão.
Só não tinha visto ainda
Home casá sem cunhão.
Valei-me meu São Francisco
Ou Padre Ciço Romão.
Se me fartá um dos dois
Me serve Frei Damião.
Como vai tirá cabaço
Home qui não tem cunhão?
Ao noivo amigo Manteiga
Eu dou um conselho assim.
Em dia de casamento
Não se pensa em coisa ruim.
Se não tem mastro pra vela
Dê um cheiro no xinim.
Saudando os noivos, na hora da saída, Seu Cândio, em voz alta, disse:
Viva a noiva, viva o noivo
E o seu acumpanhamento,
Viva a boceta da noiva
De noite com o pau dento.

E prosseguia nesse diapasão. Não há necessidade de dizer que a platéia se embriagava mais com os versos do poeta do que com a bebida patrocinada pelos candidatos. Essas bodas foram mais comentadas, na Várzea de Açu e na ribeira de Macau, do que aquelas outras de Caná de que o vate também não se descuida e aborda através de referências ao Novo Testamento.
Embora a sua fidelidade aos padrões de linguagem usados na região, hajam sido mais para os ranchos das salinas, os cortes de palha, os terreiros nas noites de festa de Santa Luzia, do que nos alpendres familiares, Cândio Cambão não deixava de ser convidado para algumas casas de família, cujos chefes aceitavam os padrões de linguagem exibidos, vez que eram os mesmos do cotidiano e da vida dos varzeanos. O resto era falsa moral. Seu Manoel Antônio da Fonseca, já nosso conhecido, mantinha, afastado da casa onde morava com os familiares, um alpendre de um armazém desocupado, que reservava para as apresentações de Cândio Cambão, transformadas em verdadeiros festivais de rimas e de poesia que embalavam as noites e quebrava a rotina da comunidade. Convidava os amigos e quem quisesse assistir, levando ou não os seus familiares. E quase morria de rir com os improvisos, com a maestria das rimas, com a métrica impecável dos versos e especialmente com o padrão de linguagem que não considerava falta de respeito, mas coerência, intimidade com um vocabulário que a hipocrisia batizava de imoral. E nem por isso, Seu Manoel Fonseca deixou de produzir uma das mais nobres e castas famílias que ainda honra a sua procedência.
Os "fracos de espírito", os preconceituosos têm medo do tipo de linguagem de Cândio Cambão, de Zé Limeira, de Moysés Sesyom ou Jorge Amado e chamam de imoral. Por isso são desaconselhados a ler, não apenas este, mas diversos e célebres tratados da literatura universal, como:
- Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, de Orlando Tejo;
- Eu conheci Sesyom, de Francisco Amorim;
- Os Capitães da Areia e quase toda a obra de Jorge Amado, ainda não superado, no Brasil, que triunfou na mídia universal com a clarividência de seus relatos, descrevendo, em linguagem nua e crua, as ações de seus personagens;
- Michaut e sua História da Comédia Romana;
- William Falkner, Prêmio Nobel de Literatura que publicou Réquiem para uma Prostituta, Santuário, Enquanto Agonizo e outros trabalhos que o celebrizaram, mesmo considerados, pela fraqueza dos preconceituosos, absurdos e até imorais para a sua época.
Existia, na época, em Porto do Mangue, um comerciante chamado João Abreu, de origem paraibana. Entendia de tudo um pouco, vez que era dado à leitura de tudo quanto fosse escrito que passasse por suas mãos. Há colaboradores deste trabalho que afirmam haver Seu Cândio aprendido alguns lances de história e de geografia, nas conversas mantidas com Seu João Abreu, quando, sem ter o que fazer, sentava-se à calçada da bodega e ficava ouvindo leituras e informações que Seu João divulgava com prazer. Gostava dos versos de Seu Cândio e o acolhia em sua bodega para cantar sem qualquer tipo de censura. E fiava seus produtos aos conhecidos, inclusive a Cândio Cambão que, certa vez, sem ter esperança de faturar qualquer trocado que lhe cortasse a corda do pescoço, apelou para João Abreu, oferecendo-lhe versos como aval de uma cuia de farinha que pagaria depois. Obtendo a concordância do comerciante, Cândio Cambão, que já conduzia afinada a sua viola, mandou a seguinte glosa.

Este é Seu João Abreu
Home de ação e de paz,
Apaga fogo com gás,
Sabe onde Jesus se perdeu..
É como o errante judeu
Parente e mulher sem ter
Dá o cu não tem pra quê,
Empresta grana a ladrão
Vende farinha a Cambão
Pra nunca mais receber.

Numa certa noite, Seu Cândio apareceu em Lagoa de Bestas, acompanhado de um filho, chamado Pascoal, já nosso conhecido, igualmente cantador, que foi apresentado à platéia e, embora fossem pai e filho, não estariam livres de se enfrentar em desafios de versos quentes, apimentados, em que predominassem os ataques pessoais, a linguagem habitualmente utilizada e o padrão de rimas livres, sem censura, e sem limites de conceito, de moral ou de outras "machavelices", como dizia Engrácia de Lula, lá no Alemão.
Depois de farto jantar, refogado com umas birinaites, acomodaram-se os poetas no alpendre de um prédio onde, durante o dia funcionava a escola local, e, sob o prestígio de numerosa e selecionada platéia, iniciarem o debate à boca da noite que se prolongou até o quebrar da barra, em que as gargalhadas e os aplausos ecoavam por entre as carnaubeiras e se perdiam por onde o sabão não lava.
Comentando os disparates do evento, alguns dos assistentes, no dia seguinte, repetiam, nas bodegas e nas estradas, versos assim:

Me chamo Cândio Cambão
Nágua doce e na maré,
Negro da barba de bode,
Pescoço de Jacaré,
Vou passar na tua casa
Vou comer tua mulé.
Respondendo, no mesmo diapasão, o filho cantou:
Deixe de cantar lorota
Que comigo ninguém pode,
Pescoço de jacaré,
Véio da barba de bode,
Vou cortar os teus cunhão,
Cuma é que você fode?

Cândio Cambão, de todos os naturais da Várzea do Açu, foi o que mais se identificou com os costumes, com as paisagens, com a linguagem dos beradeiros, vez que não conheceu outros horizontes. Nunca foi além das cidades de Açu e de Macau, os limites geográficos da várzea que percorria a pé, sem necessidade de outras referências a não ser a sua viola e a sua fama de cantador.

E, se gabando, glosava o seguinte mote:
Minha casa é meu chapéu,
Meu currico é a viola.
Fui falá cum a secretára
No tempo do impaludismo,
Sem entendê dos modismo,
Pra me impregá na malára.
A mulé de dura cara
Me pediu meio gabola:
- Documento, meu pachola?
Respondi no meu cordel:
- Minha casa é meu chapéu
Meu currico é a viola

E, quando era convidado a uma apresentação, sempre aceitava sem se fazer de rogado, consciente de seu talento e de seu poder de versejador, de glosador dos mais variados temas, enfim auto-suficiente como cantador e dono de uma linguagem, por alguns considerada imprópria, censurada, por outros, porém, digna de aplausos e de repetidos comentários nos diversos ajuntamentos comunitários e que hoje, apesar da censura da época, ilustram comentários e narrativas dos mais variados e ilustres autores.
Nos assistentes, havia sempre alguns que davam motes para ser glosados. E não faltava, dentre esses, uns mais inconvenientes que provocavam a irreverência do poeta, só pra ver a confusão. Seu Cândio tinha como lema não deixar pergunta sem resposta e mote sem glosar. Achava que o mote era um desafio a sua capacidade. Mais aguçado do que os outros, brincalhão e debochado, Parrudo, lá em Porto do Mangue, um dos assistentes, escolhia motes para provocar a censura, a confusão e o entusiasmo da maioria. Numa certa noite, deu ao cantador o seguinte mote:

O dono da casa é corno
E a dona foi feme minha.
Cândio Cambão que não deixava mote sem resposta, disparou:
Discurpe o dono da festa
Mas o mote eu vou rimá
Eu conheço o meu lugá
E sei inté quem não presta
Marco no couro da testa
Pra mostrá que a posse eu tinha
Ando uma légua todinha
Pra comê mulé no torno.
O dono da casa é corno
E a dona foi feme minha.
Outras vezes, era solicitado para louvar as moças da platéia e os versos pulavam como pipoca no tacho.
Morena dos ói azul
Dos beiço munto incarnado
Vou fazê o meu reinado.
Lá na cidade do Açu.
Vou comê o teu angu
Nem que precise casá
Mesmo assim eu vou botá
Teu retrato num espeio,
Vou fazê dos teus penteio
Uma corda de laçá.
Tinha, raras vezes, crises de decoro e fazia versos assim:
Na ponta daquele sítio
Tem quatro classe de gente
Qui só anda de magote:
Batata com Catapirra,
Cambão, Pandoca e Timote.
Duravam pouco essas crises.

Na praia de Pedra Grande, perto do Rosado, atual município de Porto do Mangue, cantava na casa de Antônio Carreiro, quando uma lagartixa caiu do teto no meio da sala e, apavorada com o burburinho que criou, correu subiu pelas pernas de uma moça que fez uma zoada medonha, pulando e gritando, sem se livrar da lagartixa que, quanto mais fechava mais prendia a bicha entre as pernas. Seu Cândio aproveitou o momento e o motivo e fez uns versos que terminavam assim:

A Lagatixa caiu
E levantou-se depressa,
Subiu nas pernas da moça.
Quanto mais ela pulava
Mais se escondia na brecha.

Os parentes e amigos da moça ficaram ressentidos e não aceitaram a referência. Cândio Cambão quis correr, mas era tarde. Acabou apanhando, dessa vez.
Cantando, doutra feita, na casa de um novato chamado Antero, recém chegado na Várzea e pouco conhecedor das pessoas, dos hábitos e da conduta de Cândio Cambão, aceitou a proposta de uma cantoria, para o que convidou os vizinhos e a comunidade. Lá para as tantas, já meio "chulado", Cândio Cambão começou a cantar loas aos presentes e se saiu com esta:

No dia qui eu amanheço
Cum três quente e dois queimando,
Cum o cabelo fumaçando,
Os amigo eu discunheço.
Pego do fim pro começo
Desprezo o qui Deus mi deu
Esqueço inté quem sou eu,
Mas vou lhe falá sincero:
Eu como o cu de Antero
E Antero num come o meu.

Foi suficiente para ser decretado o encerramento da cantoria e a expulsão do cantador.
Outra noite, não ficou bem esclarecido se na casa de Manoel Fonseca (hein, Tibúrcio? foi lá?), Cândio Cambão, desinibido, cantava assim:

Eu cantei no Juazeiro
Do Pade Ciço Romão
Me pagaro cum feijão,
Mas cantei um mês inteiro.
Me atraquei cum violeiro
Do cariri, do sertão,
Cantei martelo e quadrão
Cum um tá de Zé Limeiro
Deixei prenha num puteiro
A mulé de Lampião.
Inda sou bom nesse prato,
Me censure quem quisé,
Pra comê uma mulé
Corro, brigo, morro e mato
Topo quarqué desacato,
Enfrento inté bataião.
Eu faço qui nem Adão
Como Eva, a maçã, e a cobra.
Sou pau para toda obra
E tenho munta tesão.

Não se escusava de fazer seus versos sobre qualquer tema e se gabava de haver aprendido história, especialmente a sagrada. Vibrava quando lhe pediam para glosar motes do Novo Testamento, sobre o que discorria com relativa sabedoria adquirida em palestras com Seu João Abreu, um comerciante ali instalado, sem familiares, que lia muito e fazia questão de dividir com o poeta a cultura adquirida. E são a Cândio Cambão atribuídas, por colaboradores de fé, as seguintes produções:
Para ele, Jesus Cristo e os seus pares que citava eram seres humanos como ele, como os demais que conhecia. Usava sua irreverência sem problemas com heresia, com blasfêmia, com sacrilégio, que não constavam de seu vocabulário. E os personagens da história religiosa se apresentavam mais humanizados, sem a auréola de divindade, que ele exibia assim:

Jesus quando veio ao mundo
Foi na Barca de Noé,
Se casou cum Salomé,
Sobrinha de São Raimundo.
Correu o mundo e o fundo
Amuntado num jumento.
Fez um grande movimento,
Tocando uma concertina.
Se arranchou na Palestrina
Diz o Novo Testamento.
Não tendo mais qui fazê
Jesus foi pra Galiléia,
Armuçando na Judéia
Comeu siri cum dendê,
Depois passou a dizê
Suas missa em pé quebrado
Batizô improvisado
São João e Santo Expedito
Assim é que tá escrito
No testamento sagrado.
São José desconfiado
Da gravidez de Maria,
Mandô fazê na Bahia
Exame balanceado.
Não gostou do risultado
Que apareceu no momento
E já menos ciumento
Disse: deixa isso pra lá.
Assumiu sem recramá,
Diz o Novo Testamento
De barro Adão foi formado
E Eva duma costela,
Ele deitado mais ela
Fez o primeiro pecado.
E quando tava escanchado
Qui parecia um jumento,
Cum o pauzão todo dento,
Lembrou-se qui tava nu.
Deu-lhe uma câimbra no cu
Diz o Novo Testamento.
Se a história é verdadeira
E não me falha a memóra,
Adão não contou históra
Passou Eva na madeira
Numa grande bebedeira,
Sem esperá casamento
Tarado qui nem jumento,
Comeu maçã, cobra e tudo.
Quem duvidar fica mudo,
Diz o novo testamento.
Jesus curava ferida
De toda espécie da terra.
Desde a febre berra-berra
A espinhela caída
Ressuscitou e deu vida
A branco, preto e amarelo.
Curou até um sunguelo
Qui tinha mal de travage,
Só não curou a fogage
Qui deu no cu do guachelo.

Tinha também seus rasgos de patriotismo, de amor à terra. Não aceitava que ninguém destratasse as pessoas nem a localidade onde morava. O vigário de Açu, Mons. Júlio Alves Bezerra, se indignou, certa vez, com a negativa dos pescadores locais em contribuir com recursos para recuperação do telhado da capela. Os pescadores alegavam que todo o dinheiro arrecadado em Porto do Mangue, era levado para o Açu. O vigário, ameaçando, disse que o dinheiro dos pescadores, utilizado em bebedeira, jogo e prostituição, em vez de recuperar o telhado da capela, iria servir aos moradores para a compra de medicamento e luto para seus familiares, numa autêntica ameaça de tragédia e de praga rogada para cair sobre a localidade.. Realmente, em seguida a essa premonição, ocorreu a epidemia do impaludismo que matou a maioria dos habitantes do vilarejo..
Cândio Cambão, inconformado e sem outra forma de resistência, divulgou, numa cantoria, os seguintes versos:

Padre Júlio do Açu,
Se veste cumo urubu,
Pra benzer e excomungar
Anda com um ajudante,
De andar mei rebolante,
Seu fresco particular.

São poucos os varzeanos ainda existentes, admiradores da velocidade, da segurança e da espontaneidade das glosas de Cândio Cambão, aliadas a uma criatividade somente nos gênios identificada. Se fosse vivo ainda, poderíamos, com muita justiça, batizá-lo de Sabiá das Carnaubeiras
Não se enfadava. Estava sempre inspirado e, a troco de uma bicada de cana, em qualquer bodega, atendendo aos pedidos dos amigos mais curiosos e desafiadores de seu talento, rimava de improviso loas, críticas ou elogios. Tanto fazia louvar as qualidades quanto descrever os defeitos. Seguem algumas localizadas na memória dos admiradores, sem origem ou identificação:
Foi poucas vezes à cidade de Macau. Numa delas, lhe mostraram um rapaz alegre, desses que hoje chamam boiola, e Seu Cândio, sem gaguejar, emendou:

Os frescos de hoje em dia
Têm mania de Polu(*)
De coçar a própria tripa
Quando a coceira é no cu.

(*) Polu era um veado velho, seu conhecido.

E não lhe faltava inspiração. Estava pronto e fazia, de improviso, com ou sem censura, versos críticos ou elogiosos. Suas loas saíam bem rimadas, rigorosamente metrificadas, sem obediência a métodos, estilos, ética ou moral. As rimas lhe saltavam da mente, sobre qualquer assunto, sem obrigação de escolher outro linguajar que não fosse o seu habitual.

Vejo mocinhas bacana
Procurá lugá escuro
Com os noivo em toda festa
Agarrada no pau duro,
Diz arriando a calcinha:
- Bote essa porra todinha,
Encoste testa com testa.
Pressas mocinhas vadias
Que andam de corpo nu
Eu queria ter a pomba
Do tamanho de um muçu,
Pra empurrá na buceta
E sair atrás do cu.
Indo de Açu pra Macau
E de Macau para o Açu,
Eu tanto como buceta
Cumo também como cu.
Já diz um ditado nobre.
Toda roupa serve um nu.
Não, mas você de colete
E de gravata não cobre
A cabeça do cacete
Nem a regada do cu.
Eu gosto munto de vinho
Mas só me dão aguardente
Mesmo assim desce macia
Cumo pica em cu de gente.
Eu já fui e já vortei
E agora não vorto mais
Qui eu num sou coro de pica
Pra tá pra frente e pra trás.
Glosas
Já tive pica afiada
Mais dura do que macete,
Às vezes era um cacete
De quebrar castanha assada
Hoje não vale mais nada
Não há força que descole,
Se a boceta for um fole,
Eu empurro com o dedo.
Já fodi de fazer medo
Hoje tô de pica mole.
Já fudi uma tabaca
Cum mei palmo de pinguelo
Fiquei azul, amarelo,
Cum a catinga de suvaca.
Fazendo vez de macaca
Me encosntei num pé de muro.
Era uma noite de escuro.
Chegou uma mulé preta,
Fudi cu, fudi boceta
Inda saí de pau duro.

(*) Agradecendo a valiosíssima colaboração de Álvaro Fernandes Freire, Nelson Borges, José Lopes, Francisco Almeida, Tibúrcio Fonseca, o autor reconhece que não seria possível o resgate e o registro das facetas poéticas de Cândio Cambão, sem o incentivo e sem as informações aqui catalogadas.
CULTURA REGIONAL
CÂNDIO CAMBÃO
Resgate de Valores Culturais

GILBERTO FREIRE DE MELO
CULTURA REGIONAL

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A SUBSERVIÊNCIA DA PETROBRAS - Gilberto Freire de Melo

Há muito que a PETROBRAS deixou de ser uma empresa a serviço do Brasil e dos brasileiros. É mais uma subsidiária do subordinada ao cartel internacional dasdistribuidoras de combustíveis do que uma empresa genuinamente brasileira como a pretencem rotular. Haja vista a submissão ao truste internacional que banca os preços dos combustíveis. Por ser uma empresa de origem eminentemente nacional que se gaba de haver dado autossufiência ao consumo brasileiro, deveria ser a dona exclusiva de seu produto, e não vender sombustíveis aos brasileiros pelo preço do mercado exterior. É inconcebível que se pague, no Brasil, quase e as vezes TRÊS REAIS por um litro de gasolina brasileira, quando, na Venezuela, a gasolina de lá custa apenas ONZE CENTAVOS. Por quê? Quando consumíamos gasolina comprada no exterior, isso nos idos de 50 e 60, que cachorro era amarrado coim linguiça, tudo bem. Era errado, mas se admitia.
A mídia estás aí a divulgar o surgimento de imensos mananciais de petróleo, nas bacias de Campos, de Santos, na Amazônia, e de várias partes do território nacional, porém os preços são ditados pelas bolsas de Nova Iorque. O pró´prio álcool ou etanol, que não pertence às multinacionais e que é produto exclusivo dos agricultores brasileiros, é subordinado aos preços da subserviente Petrobras. Po quê? O Brasil atual não exerce autonomia sequer sobre o preço do gás natural que é ditado pela Bolívia. Basta uma greve ou um protesto popular dos aborígenbes bolivianos para que se altere o preço do gás produzido em Alto do Rodrigues e Guamaré. Como, quando e onde podemos falar em autossuficiência? Que autonomia é essa se os preços de nossos produtos, para nosso consumo, não são ditados por nossas leis de oferta e procura? Por outro lado, alegam, divulgam, publicam que cartel á uma artimanha criminosa. E, como tal, deve ser punida a sua prática. Como, se as distribuidoras de combustíveis multinacionais seguidas pelas canbisbaixas brasileiras (é bom dizer) a praticam abertamente como se não tivessem que obedecer às leis do Brasil? Por que o Ministério Público Brasileiro, e aPolícia Federal, a Justiça, enfim, aceitam e até dão cobertura às distribuidoras de combustíveis que usam e abusam dessa prática criminosa, sem qualquer inibição? Se não dão cobertura, por que não proíbem esse abuso , pelo menos, nas "bandeiras BR"?