*Gilberto Freire de Melo
Os habitantes da Várzea do Açu, onde se inclui, geograficamente, com muita propriedade o Alto do Rodrigues, mantinham seus hábitos individuais e ostentavam suas peculiaridades esportivas e divertidas que, muitas vezes ultrapassavam os limites da individualidade, tornando-se uma atividade cultural coletiva, própria da comunidade. Não eram monges carrancudos encapuzados na rigidez de seus caprichos. Eram, pelo contrário, alegres, felizes, brincalhões, bem humorados e participavam das ações de lazer e de entretenimento, freqüentando a casa dos amigos, os bares, as valsas, os forrós, as vaquejadas, enfim uma série de divertimentos em que se empenhavam para espantar o ócio, para afugentar as asperezas e os motivos de alegria surgiam imediatamente.
Alguns, especialistas no ramo, criavam cavalos, uns para serviços diversos, outros para esporte, correndo nas vaquejadas, muito comuns ainda na região, e outros ainda para passeio nas tardes de domingo, em que, sob o estímulo de umas birinaites nas bodegas mantidas por alguns mais dados ao comércio, geralmente instaladas à beira das estradas para exploração de cereais, de mantimentos e de umas bebidinhas que, de vez em quando, não faziam mal a ninguém.
Hoje há quem queira denominar MARCHADOR, nos haras mais importantes de alhures, que não se comparam com o ESQUIPADOR, nem são a mesma coisa, até porque este tinha mais velocidade e seu trote tinha passos miúdos e mais velozes, diferentes do trote, do galope ou da marcha. Era realmente uma marcha especial que desapareceu com os mestres especialistas.
E os passeios a cavalo, comuns na região, eram mantidos por uma casta de pecuaristas extraordinários. Criados e ensinados por mestres especializados, havia os cavalos esquipadores. Eram animais mantidos a fino trato, sob cuidados aprimorados, como: aparados os seus cascos, tosadas (ripadas) as suas crinas, escovado o seu pêlo, finalmente tratados com um carinho de que não gozavam os animais comuns, provocando inveja a outros criadores que não tinham nem usavam esses animais, chamados esquipadores. Além do trato do amestrador, era necessário que o animal demonstrasse cedo, ainda novo, as suas tendências para esquipar, como trotando no meio dos outros, num passo mais leve, porém já indicativo de que seria esquipador. Isso mesmo. Esquipador era chamado o cavalo que esquipava. O cavalo que, a partir de novo, ainda potro, além de demonstrar que se adaptaria, aceitava e obedecia às exigências do amestrador que o preparava para as exibições mais caprichosas do proprietário que, em dias especiais, ostentando o melhor que podia adquirir em termos de arreios e de equipamentos, desfilava nas estradas, nas ruas, e nos povoados, parando aqui, acolá, para umas lapadas com os amigos, que ninguém é de ferro.
O trote chamado esquipe ou esquipar era uma espécie de marcha cadenciada, não muito veloz, assim como intermediária entre o galope e a carreira. Era mais que o trote. Era, realmente, uma marcha especial, diferente do trote, do chouto, do galope e da carreira desembestada.
Tinha uma cadência sem maiores solavancos, sem os balanços das outras marchas, que suportava a
postura do cavaleiro conduzindo na mão um copo cheio de cerveja ou mesmo de água sem derramar.
Havia os mais apaixonados por esse tipo de esporte e de exibição. Eram os criadores, os fazendeiros, os rapazes mais garbosos, mais elegantes, mais charmosos que, montavam os seus cavalos e faziam suas idas e vindas pelas ruas ou por onde morassem algumas pretendidas que se debruçavam às janelas esperando a banda passar.. Geralmente eram pares de esquipadores, cada qual mais interessado em demonstrar as suas e as habilidades de seu cavalo. Na Várzea do Açu, de um e do outro lado do rio, conheciam-se, na Tabatinga, José Bolacha, José Jorge das Neves, conhecido por Jovem, João Martins, Gregório Mucuripe, Expedito Ferreira, e outros mais que engrossavam as fileiras.
Do outro lado do rio, no Saco e Xambá, foram conhecidos:
João Rodrigues Ferreira de Melo, falecido em 1926, um dos mais abastados fazendeiros das redondezas e de sua época, conhecido por Joca de Melo que, aos domingos, desfilava nas estradas poeirentas do Saco até o Xambá, exibindo as suas habilidades, sempre com um companheiro, tomando umas e outras, contra a vontade de sua esposa, D. Balbina, que não aprovava esse comportamento. Joca de Melo, sem dar trelas às implicações da esposa que, insulktava a esposa, sabendo que ela, mesmo desaprovando, permanecia no alpendre da casa grande, para receber os galanteios do marido exibicionista. Todas as vezes que passava em frente à residência, Joca de Melo “riscava”(*) o cavalo, tomava o copo de cerveja que conduzia sem derramar desde a fonte, a bodega onde captava a “água benta”, tirava o chapéu e cumprimentava:
- Boa tarde, Dona. Balbiiiiiina!
A mulher que gostava, mas fazia que não, respondia com idêntica cerimônia e no mesmo tom:
- Boa tarde, seu sem-vergooooooonha!
Joca de Melo ria gostosamente e voltava ao outro ponto terminal, onde o esperavam os amigos. Tomava umas e outras e repetia a jornada. Assim passava as horas, desenfastiando o ócio e o mormaço das tardes quentes porém gostosas do nosso verão.
Ainda no Saco se registrou a existência de exímios esquipadores, como Chico de Barros, aquele que levou um tiro no peito, depois de passar esquipando em seu cavalo diversas vezes em frente à casa de Antônio de Gila, conhecido por Seu Tonho de Gila, como a desfeitear a sua família depois do entrevero em que deu umas ligeiradas na irmã de Seu Tonho. Não tinha medo e gostava de comemorar suas ações, desfilando, em seu cavalo esquipador, para afrontar a família desmoralizada. Foi numa dessas tardes domingueiras, esquipando em seu cavalo, em companhia de Zé Correia, cada um no seu, é claro, que, ao passar algumas vezes na frente da casa de seus desafetos, levou um tiro de rifle nos peitos, disparado por Seu Tonho que não perdoara as ligeiradas que Chico de Barros aplicara em sua irmã (de Seu Tonho).
Assim também, numa de suas escaramuças anteriores, Chico de Barros que ameaçara acabar com a feira comercial inaugurada no vilarejo de Pendências, chegou esquipando em seu cavalo para afrontar Luiz Gonzaga, o chefe político de então, e foi recebido com um tiro na coxa que frustrou a sua intenção de acabar a feira, fatos já enunciados por nós em outros trabalhos, igualmente temáticos como este.
Dos mais adestrados esquipadores conhecidos na região, ainda estão aí Expedito Ferreira das Neves e Valdecir Medeiros de Moura, firmes e fortes, apesar da proximidade dos noventa janeiros, prontos para esquipar e fazer riscar os mais afoitos cavalos que porventura lhes apareçam.
Há um detalhe interessante a ser analisado. O professor, o mestre, o especialista em ensinar tem que saber e saber bem a teoria e a prática do que ensinam. Em todas as atividades conhecidas como objetivos de ensino, apenas os mestres de cavalos esquipadores não sabiam esquipar. Não é interessante?
Não deixavam, os cavalos esquipadores, de produzirem uma certa euforia em quem os montava, tornando-os petulantes, até arrogantes, posto que era uma destreza não atribuída a muitos, e eram poucos os animais que se adaptavam a essa técnica. Conheceram-se alguns cavaleiros esquipadores que desfilavam, em todo o percurso, com um copo d´água ou de cerveja na mão, sem derramar o líquido, dada a serenidade do passo do animal. Não eram também muitos os mestres que tinham a maestria de Chico Caetano, exímio treinador e especializado em adestrar potros esquipadores.
(*) “Riscar o cavalo” significava obrigá-lo a uma parada brusca que, de tão violenta, riscava o solo com os cascos que deslizavam, provocando uma nuvem de poeira no local.. Assim, Joca de Melo riscava o seu alazão para, com toda a cortesia, cumprimentar D. Balbina, sua esposa, num gesto especialíssimo de cortesia, fazendo a corte, como se dizia na linguagem colonial.
ALTO DO RODRIGUES - Uma história de Amor e Progresso / Livro em que se publicou o texto. Contatos: 084-3234-8881