segunda-feira, 21 de abril de 2008

A SANTA LUZIA DO MEU TEMPO




Gilberto Freire de Melo (*)

Conheci-a quando ainda se chamava Poço da Lavagem, passando por Santa Luzia e hoje Carnaubais. Ainda bem que não teve, como tantas, o indigesto apelido de "Senador Fulano", "General Sicrano" e coisas assim, sem qualquer identificação com seus costumes, com suas origens, com sua paisagem, com sua cultura nem com o respeito merecido por seu povo.
Vi e freqüentei as gloriosas e inesquecíveis festas de Santa Luzia. Ficava à margem esquerda do rio Açu que era transposto, quando seco, tudo bem, mas, quando cheio, em toda a sua plenitude, em embarcações rústicas, ou a nado, sempre em companhia de tipos e de pessoas com características próprias e insubstituíveis que acorriam aos primeiros dobres festivos do sino da padroeira, convidando a população local e de outras comunidades, mesmo distantes, para os festejos que duravam semanas inteiras, num ritual, ao mesmo tempo, místico e profano, onde se acotovelavam os artesãos, as doceiras, os jogadores, os boêmios, as beatas e as quengas num redemoinho fervilhante de alegria e de festa viva.
O carrossel, sem qualquer artifício elétrico ou eletrônico, era impulsionado por braços humanos que faziam girar, rodar, correr num frenesi alucinante e contagioso, animado pelo conjunto musical de Mariano ou de Zé Menininho, os maiores tocadores de concertina da região, que não apenas convidava, mas obrigava homens, mulheres e crianças à participação e à exploração de suas funções até porque teriam, no final, assunto para os comentários na ociosidade dos alpendres e nos intervalos das tarefas do corte de palha, à sombra magnífica e refrescante das carnaubeiras.
As doceiras - que ornamentavam as ruas com suas mesas coloridas, lindas, cheias de alfenim, cocadas, doce-seco, bolo-de-milho, pé-de-moleque, doce-de-coco, raiva, sequilho, "gelés" com guarnições de toalhas brancas, alvas, limpas e asseadas, e tantas outras iguarias que só a lembrança nos enche a boca d’água.
As gengibirras e os aluás gostosos, engarrafados para venda a retalho, que, mesmo sem o gelo, um produto inexistente, refestelavam o pessoal participante, num consumo guloso em que se salientavam os sabores, o colorido e a qualidade da fabricação.
As mesas apinhadas de cestinhas coloridas, de bonecas de pano, de brinquedos infantis produzidos num artesanato multicor, mais humano e artístico que comercial, atraíam não apenas as crianças, mas também os rapazes e as moças que, de mãos dadas, “brincando com o coração”, percorriam as imensas filas de mesas recheadas de peças do exclusivo e inigualado artesanato local.
A jogatina que não era proibida e em que se destacavam os mais espertos, os artistas das cartas e dos dados - os bozós; a supremacia astuciosa de Tributino na manipulação do baralho viciado e do "caipira" em copos de vidro, onde fazia valer a inteligência e a aptidão insuperáveis, sempre ganhando de nós, os "trouxas", como nos apelidava.
Os sambas, as batucadas, os cocos de roda e os "fobós" tocados por Mariano ou Zé Menininho atravessavam a noite e as madrugadas, num bamboleio entremeado de requebros e de sapateado, numa esfregação alucinante e sensual, num remelexo indescritível e emocionante, apenas entendido por aqueles que participavam e que amanheciam de olhos grudados de poeira do piso de barro batido e da fumaça das lamparinas ou piracas iluminadoras do ambiente.
As serestas em que se distinguiam o violão de Pedro Lélis, o cavaquinho de Francisquinho Nascimento, o pandeiro de Manoel Galo e a voz de Anterino, às vezes acompanhados do saxofone de Mestre Avelino, o mais consagrado maestro da região, digno de registro nos anais da história, hoje apenas lembrado em poucas memórias que fatalmente desaparecerão.
A banda-de-música executando alvoradas memoráveis, percorrendo, ao quebrar da barra, as poucas ruas do povoado, que acordava ao som de valsas como "Royal Cinema" e dobrados como "Cisne Branco", inesquecidos por quem conviveu com esses festejos, e invejáveis àqueles que não os conheceram, nunca mais repetidos, até porque a Santa Luzia do meu tempo foi cruel e impiedosamente implodida pela violência das enchentes do rio que lhe dava razão de existir. E a saudade, como dói!

Texto extraído do Livro do autor que será lançado Brevemente

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