sábado, 19 de abril de 2008

O MEDO DA MEMÓRIA









(*) Gilberto Freire de Melo
Escritor pendenciense

Há pessoas, em todas as classes humanas e sociais, que têm medo da memória. Algumas, mesmo sem motivos reais de assombração, até por não terem ou serem objetos de registro, têm medo assim mesmo. Outras, apavoradas com a divulgação ou registro público de ações de seus ancestrais, ou de liames intrínsecos, desde que não acobertadas pela dignidade, ou por sentimentos de gratidão, de reconhecimento, de admiração, se ressentem ao mais leve sinal da abertura de arquivos memoriais.
Não é o caso de pessoas, de tipos culturais que, mesmo useiros de hábitos ou de linguagem marginalizados, são motivo de orgulho e de citações obrigatórias nos mais eruditos registros e santuários da memória pública onde se deve guardar a história, o veículo mais importante da passagem do tempo, fato indispensável à coexistência das gerações.
O caso de Seu Nilo da Boa Vista, por exemplo é digno de registro sem envergonhar seus descendentes e sem ofensa ou afronta aos meios culturais. Nasceu, criou-se e viveu ali, sem conhecer outro ambiente a não ser o pé do balcão de Miguel, no povoado, onde diariamente tomava suas leroadas, após o encaminhamento de seus caprinos aos pastos habituais.
Por ser um dos patriarcas mais venerados da terra de Manoel Rodrigues de Melo, Seu Nilo recebia, como bom sertanejo e melhor pendenciense, visitas qualificadas e, com o seu linguajar característico, brindava os visitantes com estórias e causos de alto calão, durante e após o almoço, no alpendre, onde se armavam as mais confortáveis e reservadas redes de dormir, para o exercício da sesta, que ninguém é de ferro.
Uma certa vez, o visitante afortunado era Manoel Casado, diretor superintendente da Companhia Comércio e Navegação, em Macau, que, vez por outra, invadia os domínios do Faraó para a reciclagem gastronômica e mental, ao sabor das tiradas antológicas próprias do fazendeiro, que não pedia licença nem ao Papa para empregar seus conhecimentos lingüísticos, próprios da região e da formação adquirida.
Deitados em redes especiais, estavam Manoel Casado, esposa e filhos, Seu Nilo e agregados, assistindo ao costumeiro festival de sexo, acompanhado do alegre som do bodejado que não podia faltar.
Sem entender alguns detalhes sexuais das ações dos caprinos atuantes, Manoel Casado, curioso, perguntou:
-Seu Nilo, por que é que os bodes lambem o cipó quando descem das cabras?
Sem titubear, Seu Nilo respondeu:
- Você não lambe o seu porque tem o pescoço curto.

(*) Autor de Absurdos Gramaticas e Reportagens que Ninguém Escreveu

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