segunda-feira, 21 de setembro de 2009

PORTO DO MANGUE, EU TE SAÚDO!


PORTO DO MANGUE, EU TE SAÚDO!


Gilberto Freire de Melo
Escritor pendenciense - Várzea do Açu-RN

Gostaria de que não passasse o tempo e não se distanciasse a convivência com as pessoas que nos ensinaram a amar a terra, o povo e suas origens, através das lições de solidariedade e dos exemplos de cidadania que nos ajudaram na formação, quando ainda patinávamos, amealhando conceitos e práticas de relacionamento social!

Gostaria de permanecer convivendo com ícones como Antônio Tomaz e seus numerosos familiares, Raimundo e Benedito Leandro, José Barbalho, Joaquim Maria e Valdemar Campielo, Alfredo Almeida, em cujas lições aprendemos a ver a vida por prismas em que o trabalho, a honradez, o caráter, os critérios de respeito aos direitos humanos, de solidariedade às pessoas de nosso relacionamento se manifestavam em todas as ações, quer nas asperezas dos ranchos das salinas, quer no convívio familiar e administrativo, onde se realçavam os direitos dos trabalhadores que produziam a renda, não apenas dos potentados, mas dos parentes, dos amigos, dos conhecidos, das comunidades, enfim.

Porto do Mangue está aí firme e forte debruçado sobre as janelas geográficas do Oceano Atlântico, e abrindo, para nós, outras janelas, estas eletrônicas e tecnológicas que o avanço das comunicações nos propõe explorar - a INTERNET - sem qualquer diferença de como é usada nas grandes metrópoles. E por menos interessantes que sejam os motivos, ousamos invadir territórios africanos, europeus, asiáticos, o espaço sideral, quando até bem pouco tempo, apenas olhávamos o Oceano Atlântico e sonhávamos com os outros mundos existentes além-mar. E os nossos horizontes comunicativos se resumiam ao bote de João Régis, às lanchas e barcaças de Matarzzo - Maria Pia, Aurélia, Aurora - e outras, que a consciência especial de seus comandantes, nos transportava em inesquecíveis caronas até Macau, onde começava um mundo novo, um trampolim para outras paragens.

E eu me lembro - como poderia esquecer? - de Geraldo Gervásio, Buluta, Chico de Alfredo, Parrudo, Manoel Freire, ainda em campo, e dos substituídos, Nezinho Leandro, Zé Nicolau, Siduia e Sidóia, Cícero Tomaz, Zezinho Leandro quando freqüentávamos o bar de Romana, onde a maré cheia nos lavava os pés sem termos que ir à praia, roubando-nos os chinelos quando os deixávamos, displicentemente, em baixo da mesa.

Não perdi a esperança de ainda encontrar Dalva Almeida, esposa, hoje viúva do empresário José Ribeiro, de quem mantenho a terna lembrança dos serviços nos Correios e Telégrafos, em Macau; Auxiliadora Leandro que não foi muito feliz num casamento; Laís, a esposa e viúva de Nezinho Leandro, com quem me encontrei em Areia Branca - onde andarão?

Por tudo isso e por muito mais que guardo exclusivamente para mim, Porto do Mangue, eu te saúdo e te devoto sinceramente o amor que a grandeza de teu povo me impôs e que me faz, de vez em quando, pisar e beijar o chão de tuas lindas praias, como Rosado, Guaxinim, Ilha do Peixe Boi, - não é, Geraldão Gervásio?
CULTURA REGIONAL
EPOPÉIAS DA VÁRZEA DO AÇU

PRETO RUÍVO e a pega do Barbatão de Camilo Bezerra


Gilberto Freire de Melo
Escritor e Professor da Várzea do Açu - RN


(Descrição de Manoel Rodrigues de Melo - Várzea do Açu - 3ª Edição - 1979 - Com prévia autorização)


Atendendo ao que lhes encomendavam os filhos de Camilo Bezerra, Preto Ruívo que, desde que estivesse montado em seu cavalo, nada temia no pátio ou dentro do mato, queria mostrar que, apesar de velho como estava, não se trocava por muitos vaqueiros de vinte anos... Aprontou o relho, o chocalho grande(*) , limpou os arreios todos, a véstia de couro curtido, as perneiras, encheu o artifício de lã de algodão, cortou fumo, bateu a poeira do chapéu de couro, correu o barbicacho, olhou a ligeira, amarrou as peias nas correias da sela, revistou os loros, os estribos, o peitoral, as rédeas a silha, tudo.
De tardezinha, quando o sol ia desaparecendo, Preto Ruívo foi à cacimba, deu água ao cavalo, lavou-o, saindo, logo depois em busca de casa. Ali chegando, deu-lhe uma ração de milho molhado. Enquanto o cavalo comia, ele preparava os arreios, jantava, acendia o cachimbo.
À boquinha da noite, estava de marcha. Adiante o cavalo parou à margem de um córrego... Preto Ruívo, caindo do lado direito da sela, firmou-se no estribo... Depois continuou a viagem. Ali, acolá cantava uma toada para encurtar o caminho.

Nunca vi carrapateira
Botar cacho na raiz.
Nunca vi moça sorteira
Ter palavra no que diz.

E prosseguiu assim até se aproximar do bebedouro onde o barbatão costumava descer toda noite, ao sair da lua. Ali chegando, rumou em busca de uma quixabeira vizinha ao bebedouro, ficando de espreita. Apeou, desamarrou o cabresto da correia da sela, sentou-se e ficou segurando na ponta do cabresto. Um vento leve e brando roçava a folhagem escura da grande árvore que exalava um perfume doce e agradável. Os galhos, movidos pelo vento, formavam ruídos precipitados no espaço daquela noite fresca e saudosa.
Momentos depois saía a lua clareando as asperezas daquelas paragens desabitadas. Raios fulvos de luz caíam sobre a folhagem escura da mata, formando ondulações de um crespo quase agitado. Preto Ruívo ergue a cabeça, olha pela brecha de uma capoeira e vê passar, ligeiro e furtivo, como um gato do mato, um vulto escuro com rajas por cima do lombo e bargado dos peitos para a barriga.

Preto Ruívo levantou-se nas pontas dos pés, meio agachado. O cavalo acende as orelhas. Preto Ruívo amarra o cabresto na correia da sela, cochicha no ouvido do cavalo, passa-lhe a mão na cabeça, monta-se e sai arrodeando pela retaguarda. Vai pisando sobre ovos, receoso de espantar o bicho antes do tempo.

Adiante ouve, apesar de mil cautelas, um estaladeiro nos paus. O cavalo, contra a sua espectativa, começa a ginetear. Preto Ruívo o detém, passando-lhe a mão calosa pelas crinas ondulosas. Impossível, porém, detê-lo nos primeiros preparativos da corrida. É o barbatão. Preto Ruívo, mais uma vez, tenta parar o cavalo, esperando que o barbatão se aproxime da cacimba. Nesse transe angustioso da corrida há dois aspectos curiosos trabalhando fatores contrários. Primeiro, que o cavalo não se deixará mais domar pela cautela e prudência do vaqueiro, receoso de perder a partida. Segundo, que o estado psicológico do vaqueiro, aparentemente moderado, tentando refrear o animal para não espantar o barbatão, aguarda apenas o momento para se decidir entre uma e outra coisa: deixar que o touro tome a posição ideal para o início da corrida ou, caso contrário, atender instintivamente ao impulso natural do animal, indo com ele por cima de paus ou de pedras, entregando em grande parte a ele o resultado da carreira.
Mas, não! Em tudo na vida há sempre um meio termo. Na vida do campo também. Preto Ruívo tinha razão. Ceder totalmente aos impulsos violentos do seu cavalo, seria, na pior das hipóteses, precipitar a carreira, perdendo afinal o barbatão. De maneira que a sua prudência, o seu tato, detendo com paciência o cavalo, usando para isso de mil cavilações e cacoetes, tinha muita razão de ser. E assim foi parando, detendo o cavalo, até que o barbatão se aproximou da cacimba.
Quando o bicho foi entrando, Preto Ruívo gritou. O barbatão perdeu os sentidos e zarpou pelo lado direito do bebedouro, num trancado formidável de paus. Ao grito do vaqueiro, o cavalo, atarantado com o quebradeiro do mato, ergueu-se num salto de fera, voando por cima de uma moita de jurema florada, levando nos peitos o entrançado gigantesco das jitiranas. Preto Ruívo gritou novamente; - Ê boi! - E o bicho espichou-se numa carreira desabalada. Num abrir e fechar do mato, quando o barbatão procurava escapulir-se das unhas do vaqueiro com o seu cavalo, o negro, sagaz que só ele, joga o cavalo por cima de uma moita de xique-xique, batendo na anca do barbatão espritado. E gritou contente: - Ê bicho danado!!!... - Atrás, o mato abria e fechava numa velocidade sem limite.

Quando Preto Ruívo sentou a mão de novo na anca do barbatão, o bicho espritou-se. Largou-se em disparada louca por cima do cipoal bravio, deixando atrás uma nuvem de poeira grossa e cinzenta. Ao sair numa capoeira pequena e estreita. Preto Ruívo enrolou a mão na saia do barbatão e segurou com força e com fé. Abrindo o cavalo num ímpeto de raiva, pegou o cavalo nas esporas e gritou ao bicho, jogando-o por cima de uns troncos de catingueira.

No chão o touro, Preto Ruívo, ágil como um gato do mato, pulou embaixo da sela com o relho na mão e amarrou-o. Botou o chocalho grande, peou-o e tangeu-o para um lado da capoeira.
A lua com seus raios fulgurantes clareava aquela cena bravia, cheia de heroísmo e poesia campestre.
Preto Ruívo, cansado, deu um suspiro prolongado. Puxou o currimboque do bolso da véstia, tomou uma pitada, acendeu o cachimbo e ficou ali, parado, de cócoras, olhando o suor que corria simultaneamente dele, do cavalo e do boi.
Em vista da hora avançada, Preto Ruívo resolveu pegar uma "madornazinha" enquanto clareava o dia. Assim fez. Encostou a cabeça no tronco de um pau e adormeceu. Quando acordou, o sol vinha saindo. Levantou-se, bateu a poeira da véstia, sacudiu o chapéu, arrumou tudo, tangeu o barbatão e foi andando pelo aceiro do mato até sair na estrada. Antes do almoço, chegava Preto Ruívo à Fazenda Alemão, de propriedade do Coronel Camilo Bezerra, pai de Julião, com o barbatão à frente.
De muito longe, já o povo da redondeza tinha ouvido o toque do chocalho grande e começava a juntar-se na frente da casa para ver e saudar o heroísmo de Preto Ruívo.
A cada pancada do chocalho estrugia um grito de louvor a Preto Ruivo, partindo da assistência, postada na frente do pátio. Quando não era o chocalho grande, era o aboio magoado e dolente do negro, gaguejado, de mistura com uns tons profundos de saudade, que vinha endoidecer aquela aglomeração.

Um moleque que estava trepado no mourão da porteira, dedo ao ouvido, aboiando insistentemente, gritou de repente: - Lá vem! Lá vem! - A multidão explodiu em entusiasmo. Houve uma algazarra infernal. Daí a instantes, o eco sonoro do chocalho grande crescia aos ouvidos da assistência e o aboio do Preto Ruívo, dedo ao ouvido, desencavava da memória do povo cenas extraordinárias de vaquejadas e ajuntamentos, vividos pelos seus amigos em épocas remotas.

Ao assomar ao pátio do curral, Preto Ruívo soltou um daqueles aboios muito seus e do seu feitio que arrancou lágrimas da multidão. O povo alvoroçou-se, abrindo um semicírculo por onde deveria passar o touro com o herói daquela proeza pouco vista e conhecida naquela terra.
Meninotes vadios e medrosos trepavam-se nas grossas carnaubeiras deitadas horizontalmente, formando o curral. Preto Ruívo apeou-se nos braços do povo, entre vivas e papoucos de fogos-do-ar. Desse dia em diante ficou sendo considerado o maior vaqueiro da redondeza.
Ainda hoje nas ribeiras do Açu e de Macau, quando se fala em façanhas heróicas da vida do campo, em escaramuças de vaquejadas, pegas de barbatões, é o primeiro nome que avulta, cheio de glória e de vida: PRETO RUÍVO, VAQUEIRO DO CORONEL CAMILO, DONO DA FAZENDA ALEMÃO.
A CARNE DE XARQUE EM OFICINAS


Gilberto Freire de Melo
Escritor e "Beradeiro" de Pendências, Várzea do Açu-RN


Na tentativa de ampliar as reduzidas informações da história sobre a povoação de Oficinas, no atual município de Carnaubais, na Várzea do Açu, demo-nos ao trabalho de vasculhar alguns registros, trazendo a público detalhes que caracterizam a existência de uma indústria - a primeira no Brasil - com que conviveram nossos recentes antepassados.
Como faz parte da história sócio-econômica da região, fazemos questão de registrar, para conhecimento de nossa geração contemporânea.
Manoel Rodrigues de Melo, foi quem mais se aprofundou nos fatos que geraram e mantiveram, por não se sabe quanto tempo, desde que não se conhecem os primórdios do seu nascimento. Sabe-se, no entanto, que já existia em 1775, conforme referência do então "Governador e Capitão-General José César de Menezes, de Pernambuco, em sua Breve Notícia da Capitania do Rio Grande do Norte, na qual figura uma descrição da Ribeira do Açu", adiante transcrita.
Conforme nos descreve Manoel Rodrigues de Melo, as últimas edificações de Oficinas, quando já desativado seu empório industrial, e desabitado o lugarejo, desapareceram com as inundações do rio Açu, em 1924. O início das atividades, e o período de duração não foram registrados, fatos que nos levaram a percorrer os labirintos, os baús e as prateleiras onde se amontoam registros históricos regionais, sem ainda encontrarmos esses dados, sumamente importantes para a história sócio-econômica da Várzea do Açu e de seus desdobramentos.
Felizmente, Olavo de Medeiros Filho, outro incansável garimpeiro das minúcias históricas da região, autor de "RIBEIRAS DO ASSU E MOSSORÓ - Notas para sua história", nos traz alguns subsídios indispensáveis, resultado de suas pesquisas arqueológicas. E, nas páginas 11 e 12, do mencionado trabalho de José César de Menezes, bateado nas Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, nosso conterrâneo Olavo de Medeiros Filho, o faz seguinte registro que, embora não satisfaça a nossa curiosidade, se refere a épocas em que já era conhecida localidade da charqueada.
Esta Ribeira tem vinte huma legoas de Costa na Fazenda do Jabota azo Sul della, que divide com a ribeira do Apodi, e correndo para o Norte buscando a Marinha até a dita Costa na ponta do Mel em quatro gráos e vinte e dous minutos de Latitude, e trezentos e quarenta e cinco gráos e vinte minutos de Longitude, tambémdivide com a mesma ribeira do Apodi e correndo o rumo de Leste até o Porto de Agoa maré em quatro grãos, e vinte e cinco minutos de Latitude, e trezentos e quarenta e seis grãos e sete minutos de Longitude, divide com a ribeira do Norte, e virando ao rumo do Sul vai até a Fazenda do Sanha-há, e o riacho chamado garganta do Padre David, onde vai confundir em uma e outra parte com a Capitania da Parahiba, e a ribeira do Siridó: Há esta Ribeira de algum commercio, por virem todos os annos três ou quatro barcos às officinas a factura de Carnes secas e couramas (sublinhado pos nós): Tem uma povoação com sua Freguesia a qual he a seguinte: Povoação e Freguesia de S. João Baptista da Ribeira do Assú.
(MENEZES, José César de - Idea da população da Capitania de Pernambuco, e de suas anexas, extensão de suas costas, Rios e povoações notáveis, etc. Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1924 (Págs. 11 e 12).
É o registro que temos de mais antigo da existência da indústria da Carne Seca (charque) em Oficinas, no atual município de Carnaubais, que a revista Veja, em meio à década de 90, do século XX, informou ser no Ceará. Nosso protesto, em carta enviada àquela revista, corrigia, afirmando que, talvez por desconhecimento geográfico, e dada a proximidade, alguém tenha informado ser no vizinho Estado do Ceará, o que fez, inclusive, alguém, igualmente desavisado, chamar de Carne do Ceará a charque produzida no Rio Grande do Norte.

São informações dignas de fé, fundamentadas em registros históricos do tempo de sua existência que nos põem a salvo de dúvidas e de questionamentos sobre a veracidade.
Em sua antologia sociológica sobre paisagens, tipos e costumes do Vale do Açu, intitulada VÁRZEA DO AÇU, de 1940, adquirida por nós já em terceira edição, de 1979, MANOEL RODRIGUES DE MELO, o mais respeitado cronista do baixo vale do Açu, nos convoca a reviver, com ele, os atos e os fatos que fazem vibrar de entusiasmo o espírito varzeano de quem teve a felicidade de aqui respirar a fragrância da palha da carnaúba, privilégio exclusivo de nossa região. Sobre oficinas, ele relata, com riqueza de pormenores, a fotografia das ternuras e das confraternizações humanas e sociais que não se dobram às asperezas que infernizam a vida dos nordestinos.
Assim, ele retrata a

FESTA

ALVORECIA A MANHÃ DE 19 DE MARÇO. A POPULAÇÃO de Oficinas despertava sob forte e estridente salva de roqueiras(*). Casas desalinhadas e confusas apresentavam, porém, aspecto festivo. Começavam a chegar os primeiros carros de bois trazendo as famílias ricaças da terra. Mulos possantes e gordos passavam sob o peso formidável das malas de "doces" rinchando pelo meio da rua. De longe em longe, ouviam-se tropeladas(*) de cavalos esquipadores(*), passando de estrada afora, quebrando a monotonia do lugarejo provinciano. À frente da capelinha branca, bafejada pelo vento fresco daquela manhã de março, esvoaçavam bandeirolas de papel de seda engalanando o adro com suas cores bizarras e vistosas. A banda do Açu executava formosos trechos na passeata da alvorada, despertando curiosidade nos transeuntes. As bodegas e as casas de tecidos abriam as portas alegres expondo cuidadosamente os seus mostruários rústicos. A povoação se movimentava por todos os lados apressando os preparativos para a festa.
Às seis horas da tarde começaram a passar as primeiras pessoas para a festa. A família de "Seo" Filipinho já ia saindo no carro de boi. As meninas do velho João Severino, o povo de Chico Ferreira, muita gente já ia passando.D. Marocas recomendou ao preto João Luís:
- Você não se esqueça de tirar a carne do varal, não, João Luís; tenha cuidado na janta dos "meninos" (homens feitos) para o cachorro não comer, já ouviu?
João Luís respondeu:
- Sim, senhora!

Adiante, uma das "meninas" (moça feita) gritou:
- João Luís, vá buscar a roupa dos "meninos" que está na casa de comadre Maria Rita, viu?
- Sim, senhora! Respondeu João luiz, novamente. E o carreiro deu sinal de partida.
- Boi bargaaaado!!!(*) - (lepo), o chicote estalava com força no lombo do boi. O carro saiu, chiando ali, piando acolá, até se encobrir na curva do beco. A passarem pela Ponta da Ilha, Samuel já estava se aprontando com a família. Houve troca de saudações, garridice de moças, gritaria. Maria de João Alves estava na porta, bucho à boca, com o menino escanchado no quarto, olhando a passagem da família de "Meu Padrim Filipim". O povo do Queimado já vinha chegando também, uns a pé, com os sapatos amarrados na mão, trouxas de roupa engomada no braço, outros a cavalo, conduzindo mulheres e moças na garupa, enquanto outros, amantes da mulher e dos filhos, levavam dois, três entre a garupa e a lua da sela.
Um João Alves de Melo, teria bons quadros para a objetiva de sua Kodak. Note-se o converseiro zunindo de estrada afora. De longe se ouvia o alarido.Pareciam que tinham bebido água de chocalho. João Belmiro passou tangendo uma jumenta carregada de "doces" das Quitérias. Sinhá dos Anjos tinha trazido um bocado de "doce" de Macau para vender na festa das Oficinas. Júlio Hermosa tinha chegado de "noco" c om um circo que era uma coisa do outro mundo. Vitória e Josefina pulando nos trapézios, dando pulos mortais, fazendo ginástica, dançando no arame, era de fazer cabra perder a bola. Júlio Hermosa, homem simpático e atraente, cabeleira longa e comprida, olhos castanho-escuros, pele moreno-bronzeda, trajando bem, usando culotes, com todo o rigor da moda, assim com ares de engenheiro que sabia muito, conversa elegante e desembaraçada, era só em quem se falava naquele tempo. Ocupou por vários meses o comentário malicioso da Várzea...
Naquela noite, lá estava ele, na sua pose de Dom Juan desconhecido, vestido na sua fatiota de casemira pardo-escura.
E o povo começava a chegar de todas as bandas daquele mundão semi-selvagem, admirado com a cabeleira do homem e com a beleza das moças do Circo.
Veio gente de toda a parte. Das Pendências, do Rosário, do Alto do Rodrigues, do Xambá, do Carnaubal, da Tabatinga, de toda a redondeza, enfim.
Oficinas era, naquela noite,m comparando mal, um grande formigueiro em movimento. Entrava gente e saía gente, cargas e mais cargas eram arriadas no meio da rua, cavaleiros subiam e desciam pela estrada do Curralinho; nunca se viu uma das festas nas Oficinas tão rica de aspecto, de movimentação de dinheiro e de gente. Henry Koster, acaso fosse vivo e andasse por ali,teria anotado coisas do arco-da-velha.
O sino da capela tocou a primeira chamada para a novena.Quem vinha, de longe, ouviria, por certo, a pancada do sino reboando de Várzea a dentro, cujo som acordava na alma dos convivas as delícias da festa passada.A música já estava no patamar quando o povo foi-se aglomerando. Instantes depois, a capela estava cheia. Começou a novena. As cantoras entoaram os benditos e a música acompanhou. Os foguetões pipocaram no ar. O povo ajoelhou-se. Nessa noite o leilão foi de feder a fogo. Depois da novena o patamar da Capela ficou coalhado de gente. João Crisóstomo começou a gritar:

- Quanto me dão pelo rebuçado(*) oferecido pela donzela Maria Rosa? Quanto me dão?
O namorado da donzela que ficava lá fora por trás do povo, na sua velhacaria de burro enjeitado, soprava no ouvido de algum morador e mandava botar oreço no rebuçado. Do outro lado aparecia o segundo pretendente ou "algum cabra que gostava de estrepar os outros" e começava a botar dinheiro no objeto só para fazer mal ao outro.
Essa contendas quase sempre iam muito longe. Um simples cravo de donzela poderia dar cem ou duzentos mil réis, moeda daquele tempo. Entre os ricaços da terra, porém, a coisa era diferente. Depois que eles embirravam para tirar um objeto em leilão não havia quem os demovesse daquela intento. Um copo de cerveja poderia elevar-se até a duzentos mil réis, conforme a disposição dos contendores. Na maioria dos casos, não era que o objeto tivesse o valor da oferta, e sim o dever que tinham eles de zelar o seu nome, a sua posição social oi econômica. Outras vezes era uma pequena quebra de cordialidade, um caso pessoal, um amor que estava em jogo, um objeto que se dava por conveniência. E que se queria reaver por todos os meios. Muitos o faziam também por mero lustre, diletantismo, outros ainda como acontecia com os rendeiros e meeiros do Baixo-Açu, como prova de estima e gratidão aos patrões. Terminado o leilão, a festa continuava em paz até o dia amanhecer.Todos brincavam e se divertiam na maior alegria e camaradagem. A cerveja lavava os balcões de todas as bodegas e botequins. O bozó e o caipira passavam a noite batendo. A jinjibirra e aloá exalavam um cheiro enjoativo no ar. O estrato Flor de Amor e a Oriza tinham gasto naqueles dias. Curió e Antônio de Espada, dois repentistas de fama da terra, passavam a noite bebendo cachaça e fazendo versos de improviso aos pés dos balcões. Décimas, loas, tendo por tema a festa, a cachaça, os motivos mais simples e banais. Os matutos de Tabatinga tinham vindo com cargas de aloá para vender na festa e ali estavam com as ancoretas trepadas em cima de caixões, gritando:
- Óia o aloá(*) bom!
- Óia a jinjibirra(*)!

O menino do caipira soltava um dito:
- Óia o caipira. Quem menos bota mais tira!
As doceiras estavam com as malas de doces expostas à venda. A praçuela cheia de botequins, o povo andando pra cima e pra baixo, um converseiro zunindo grosso, uns bebendo, comendo, outros fumando, prosando e dançando.

Um vendeão da Pendência berrava com força:

- Chega, freguesia, prô moca de Sinhá Maria!
Os soldados mata-cachorros que tinham vindo do Açu andavam rondando por ali, arrotando lembrança e querendo introduzir regras novas na vida do povo da Várzea. Zé Quingu ficou logo zangado com o inxirimento daquele soldado arregalando os olhos para ele, como se ele tivesse medo de careta. Naquela noite não sei que diabo de veneta deu em Chico de Barros(*) que ele foi ter na festa das Oficinas. Quando ele apareceu no meio do povo as mulheres começaram a cochichar umas com as outras, acompanhando com os olhos os passos do valentão da Tabatinga. Ali, acolá, ouviam-se comentários baixos, no ouvido uns dos outros, como quem estava segredando alguma coisa.
- Aquele é Chico de Barro!... - diziam.
- Cala a boca, menina!... Tranca essa língua!... - diziam outros meio assustados.
E, num refrão de susto e de medo, ouviam-se ainda essas vozes:
- Virgem Nossa Senhora, me valha São José das Oficinas, não permitais que haja barulho!...
Foi assim que se propagou de repente a notícia de que Chico de Barros estava na festa.
Mas o galo só canta grosso no seu terreiro. Chico de Barros foi à festa mais com o fito de se divertir do que mesmo de fazer arruela. Tinha bons amigos nas Oficinas, gostava dos Filipe, cuja amizade era velha e por isso nenhuma vontade de arruaça o dominava. Aquilo tudo era besteira do povo.
Logo desapareceu a desconfiança de todos quando o viram na maior camaradagem com os Filipe, braços dados, bebendo, prosando, naquele risasdaria estrepitosa e cheia de verve.
E a festa continuou calma, com aquele zunzum medonho de gente pra cima e pra baixo, até a hora da missa.
Eram cinco horas quando badalou a primeira pancada do sino chamando os fiéis. O altarzinho foi armado no patamar da Capela denotando o gosto artístico e o devotamento que mereciam ali as coisas de Deus. O povo se comprimia todo ali; pararam todos os carrocéis, os caipiras e os bozós; Um silêncio enorme encheu toda a atmosfera vazia! O padre sobe ao altar. Passa um sopro de vitalidade por aquelas frontes desfiguradas e amarelecidas pelo sono e pela inhaca da cachaça, da cerveja e do vinho do Porto. O vigário sobe ao púlpito e faz um sermão, em estilo água-de-rosas como que selando os folguedos da noite. Em seguida anuncia a hora dos casamentos e batizados que são emglobadamente de cinqüenta a mais. Terminada a missa, todos se dirigem para as malas de "doces" a fim de levarem uma lembrança da festa.
Outros compram garrafas de vinho do Porto para dar de presente a algum amigo que não veio à festa, ou à preta velha que ficou por dona da casa, tomando conta dos meninos pequenos e dos bichos de chiqueiro. Sequilhos, doces secos, bolo de milho, pé-de-moleque, grude, alfenins, de toda versidade(*), eram todos arrebatados depois da missa. Nestes últimos, porém, havia inúmeros modelos atraindo os olhos cubiçosos dos meninos ricos e das moças ingênuas e casadouras da Várzea. As grandes rosas com as pétalas abertas, os cravos alvíssimos, os cavalinhos bem ripados, os carneiros cheios de lã, os patinhos ariscos presos em conchas ovais, os abacaxis e dezenas de outras "formas" interessantes formavam o mundo dos meninos e das moças que iam à festa. Não só dos meninos e das moças, mas de todos, dos pais, das mães, das matronas gordas e ricas, cheias de ouro, de trancelins, de voltas, anéis, grampos e marrafas, usando echarpes de seda fina, botins de cano comprido, espartilho, totós, leques e todos os ademanes da época e da moda.
A venda de todas essas guloseimas era uma velha tradição ali existente que ainda hoje faz parte das festas da região.

Outro aspecto curioso da festa do padroeiro de Oficinas, como de todas as festas da redondeza, era o infalível passeio a cavalo, dos melhores cavaleiros e cavalos da região.
João Piolho, Sebastião Belo, José Felipe e tantos outros de gosto e de fama, montavam nos seus cavalos esquipadores e saíam fazendo piruetas pelo meio da praça(*) para todo o mundo ver, admirar e aplaudir. O povo ficava parado, no patamar da Capela, na frente dos botequins, nas janelas das casas, no meio da rua olhando a parelha(*). O cavalo de João Piolho parecia uma rede balançando. Ele tirava o freio e o cabresto e o cavalo saía marchando com a mesma naturalidade de quem não estava fazendo nada... O caipira e o bozó continuavam a bater depois da missa, até o sol alto.O povo regressava às suas vivendas distantes, cochilando pelo meio da estrada. Os cavaleiros passavam de magote, esquipando e correndo de estrada afora,, matando o bicho(*) nas bodegas, riscando os cavalos(*) nas portas dos amigos, naquela prosa danada que não tinha fim. As famílias voltavam em cima dos carros de bois, cochilando com a quentura do sol batendo de chapa na cara das moças, das velhas, das matronas pesadas e gordas, dos meninos, das negras, de todos que voltavam da festa, moles de sono e de enfado. Assim que chegavam em casa caíam dentro da rede que nem uma pedra dentro dágua. Ninguém tivesse o trabalho de chamá-los para o almoço, porque o sono, a ressaca da festa, ajudados pela embriaguez do vinho, da cachaça e da cerveja, eram muito mais poderosos do que a fome. As grandes fazendas, tão movimentadas nos dias regulares, pareciam, nesses dias, um ermo desabitado. A povoação se fechava toda com os moradores dormindo dentro das casas.Uma tristeza imensa invade o lugar. O padre regressava ao Açu, depois dos casamentos e dos batizados. Não se via vivalma andando na rua, indicando que a festa se tinha acabado".


GLOSSÁRIO

(*) Roqueira - O autor talvez queira referir-se a "ronqueira" Espécie espingarda, arma de fogo, que, ao disparar, produz som troante, rouco, roncador, ouvido além dos limites de sua ação.

(*) Tropeladas - Derivado de "tropel". Som produzido pela marcha cadenciada dos cavalos esquipadores, no barro duro da Várzea.

(*) Cavalos esquipadores - Uma espécie de cavalos adaptáveis às exigências do "mestre domador" que os ensinava a marchar num trote especial, cadenciado, mais largo, entre o chouto e o galope. Joca de Melo, no Saco, desfilava em seu cavalo esquipador, conduzindo, na mão, sem derramar, um copo de cerveja.

(*) Parelhas - Par de cavalos esquipadores que se exibiam em conjunto.

(*) Padrim Filipim - O autor se refere a "Filipim", um ricaço da região, tronco-raiz da família Felipe, ramificada na região. Como exercia liderança e patriarcado na Várzea do Açu, apadrinhava, batizando os filhos da maioria dos habitantes.

(*) Aloá - Suco, ponche, jinjibirra, ou garapa de frutas (às vezes da casca do abacaxi, por exemplo), adoçada com açúcar, que se vendia nos botequins, nas feiras ou nos ajuntamentos de pessoas em movimento.

(*) Chico de Barros - Um tipo popular da região do Baixo Vale do Açu, dado a arruaças, encrenqueiro, temido pelos habitantes da região, que foi assassinado por Antônio de Gila, no Chambá, após desfeitear uma sua irmã.

(*) Matando o bicho - Bebendo cachaça. Diz-se do ato de tomar "umas e outras".

(*) Riscando os cavalos. Ato de fazer interromper a marcha dos animais, parando-os bruscamente. Diz-se "riscar o cavalo", pelo fato de a parada inesperada produzir riscos dos cascos do animal, levantando a poeira do solo local.

(*) Versidade - Diversidade. Aqui o autor é fiel à linguagem dos varzeanos.

(*) Praça - Uma demonstração de quanto era importante a povoação, cuja sede era dividida em praça, ruas, etc.
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